quinta-feira, 14 de abril de 2011

Juventude negra, cidadania e resistência no Brasil - artigo acadêmico




Este artigo acadêmico foi apresentado no IV Encontro Afro-Cristão, incluindo-se entre as apresentações sobre o tema Juventude Negra: Sujeito de Direitos, no subtema Políticas Públicas. Seus autores são Adriana de Lourdes Szmyhiel Ferreira, Gildo José dos Santos e Mayra Brito dos Santos Leite. Neste texto, discutem, principalmente, a negação dos direitos essenciais aos jovens negros por parte da sociedade e do Estado brasileiro, as consequências dessa postura e formas de resistência do movimento da Juventude Negra. 

    
RESUMO
 O presente trabalho tem como objetivo contextualizar os aspectos enfrentados pelos jovens negros na sociedade contemporânea resultado de um processo histórico de negação de seus direitos. Estes aspectos, na maioria dos casos, provocam consequências avassaladoras na vida destes jovens e de seus familiares que, na maioria dos casos, tem como consequência a morte. A sociedade brasileira, regida por um Estado Democrático de Direito, em que todos os cidadãos devem ter seus direitos garantidos, ainda apresenta dados que contrariam os princípios consagrados na carta magna. Os altos níveis de desigualdade e injustiça social existente em nossa sociedade, principalmente nas regiões mais periféricas, demonstram um cenário de negação de direito, sobretudo no tocante aos direitos fundamentais dos jovens negros, seja, a vida e saúde. A base do presente artigo é um Trabalho de Conclusão de Curso intitulado: “DESAPARECIDOS DE MAIO DE 2006: UMA HISTÓRIA SEM FIM UM DESAFIO PARA O SERVIÇO SOCIAL NA PERSPECTIVA DE DIREITOS HUMANOS”.  A intencionalidade do trabalho em tela é provocar uma discussão que contemple a difícil sobrevivência dos jovens negros, os dados estatísticos, com recorte racial, uma breve contextualização do processo de luta do movimento negro, as políticas públicas específicas, bem como a possibilidade de um caminho construído pelos jovens que acabe e/ou diminua a mortalidade da juventude negra. A ênfase do trabalho, que tomamos como base, levou em consideração a questão religiosa, por meio de falas, colhidas durante entrevistas com as familiares que tiveram seus filhos vitimas de violência e também sofreram violência ao buscarem os seus direitos. A violência que marcou o episódio, fruto do trabalho referência, manifestou-se em suas diversas faces, pois ceifou a vida de 493 pessoas, sendo sua maioria, jovens negros, deixando 4 desaparecidas e mitigou o exercício de cidadania de muitas famílias.
Palavras-chave: Jovens negros – Violência – Estado - Religiosidade
o homem é o único ser vivo que planeja, a extinção da própria espécie. Os animais lutam, mas não fazem guerra. O homem é o único primata que planeja o extermínio dentro de sua própria espécie e o executa entusiasticamente e em grandes dimensões...” (ENZENSBERGER, H.M. 1995:9).

 INTRODUÇÃO
A violência contra a população negra no Brasil está longe de ser um fenômeno pertencente ao passado, os podres frutos colhidos no enraizamento do preconceito e exploração dos negros no período da escravatura, contaminam a sociedade com a exclusão e o ainda existente genocídio do segmento negro no país. Os jovens negros ainda estão sofrendo na carne as conseqüências do processo histórico brasileiro, sendo a parcela da população que apresenta piores condições de moradia, escolaridade, empregabilidade e ainda caracteriza-se como o grupo que mais sofre com a violência urbana.
Ainda que tenha havido conquistas no âmbito legal, vemos que muito deve-se avançar na consolidação destas diretrizes e garantias estabelecidas em leis, pois tem havido um aumento dos homicídios de negros no país, ou seja, é expressivo o retrocesso do Brasil nos resultados de combate à discriminação racial e garantias efetivas de melhores condições de vida a essa população.
Muitos movimentos sociais e instituições religiosas assumem o papel do Estado no tocante a assistência às pessoas vítimas da violência, como iremos explicitar ao longo do artigo. A fé e as práticas religiosas são uma alternativa para muitas famílias que vivenciaram casos violentos e encontram na religiosidade um apoio para o enfrentamento e superação do sofrimento e uma válvula de escape ao sentimento de indignação. Cabe ainda chamarmos a atenção para a notória  apropriação da expressão cultural, sobretudo por grupos de jovens das regiões periféricas, que vem, muito comumente,  sendo utilizada como instrumento de denúncia, fomentando a politização dos jovens e em diversos casos, o estreitamento com entidades de cunho religioso. 

Iniciaremos este trabalho apresentando, de forma sintética, alguns levantamentos, que acreditamos prescindem comentários, obtidos por meio de pesquisas e estudos, reveladores do cenário em que atua o jovem negro, como protagonista, na sociedade brasileira e que justificam a necessidade, urgente, de nos atentarmos para a gravidade da situação de maneira interventiva, com propostas de transformação, pois agora já conhecemos a realidade. Em conformidade ao relatório da Unicef, Situação Mundial da Infância 2011:

O Brasil é um país jovem: 30% dos seus 191 milhões de habitantes têm menos de 18 anos e 11% da população possui entre 12 e 17 anos, uma população de mais de 21 milhões de adolescentes. Por isso, é essencial que o Brasil atenda às necessidades específicas da adolescência nas suas políticas. Caso contrário, corre-se o risco de que um grupo tão significativo e estratégico para o desenvolvimento do País fique invisível em meio às políticas públicas que focam prioritariamente na primeira fase da infância e na fase seguinte da juventude. Atualmente, 38% dos adolescentes brasileiros vivem em situação de pobreza, enquanto esse percentual é de 29% em relação à média da população. Já as crianças e os adolescentes afrodescendentes são os mais afetados pela pobreza, elevando esse número para 56%.[1]

 No Mapa da Violência 2011: Os Jovens do Brasil, de 2002 a 2008, vimos que:

(...) entre os negros, o número de vítimas de homicídio aumentou de 26.915 para 32.349, o que equivale a um crescimento de 20,2%. (...) Assim, um índice nacional de 67,1 (...) para o ano de 2005, indica que, nesse ano, morrem proporcionalmente 67,1% mais negros do que brancos.(...)as taxas de homicídio de brancos caíram de 20,6 para 15,9 em cada 100 mil brancos; queda de 22,7% entre 2002 e 2008. Já na população negra, as taxas passaram de 30,0 em 2002 para 33,6 homicídios para cada 100 mil negros em 2008, o que representa um aumento de 12,1%. Desagregando por região, e mais ainda, por estado, o panorama fica muito variado e heterogêneo, principalmente quando se observa a taxa de homicídios de negros. Em 2002, o índice nacional de vitimização negra foi de 45,8. Isto é, nesse ano, no país, morreram proporcionalmente 45,8% mais negros do que brancos. Apenas três anos mais tarde, em 2005, esse índice pula para 67,1 (morrem proporcionalmente 67,1% mais negros que brancos). Já em 2008, um novo patamar: morrem proporcionalmente 103,4% mais negros que brancos,
isto é, acima do dobro![2]

No final do século XX verifica-se uma transformação na estrutura demográfica do país, especificamente na distribuição etária da população, onde se detecta um crescimento excepcional do grupo jovem do país. Esse fator vem acompanhado com um crescimento na desempregabilidade dessa população[3] (CASTRO e AQUINO, 2008, pág 9), além da vulnerabilidade dos jovens à violência. Desta forma, começa-se a elaborar medidas específicas para a população jovem do país, que associam os aspectos da proteção social com os de promoção de oportunidades de desenvolvimento.

Em 2004 as discussões sobre o tema tomam mais visibilidade tendo como conseqüências a criação da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), o Conselho Nacional de Juventude (Conjuve) no ano seguinte. Algumas ações foram concretizadas, entretanto o maior desafio da Política Nacional da Juventude hoje reside na necessidade de considerar dentro deste grupo, as especificidades existentes entre as “diversas juventudes” brasileiras.

Feita esta breve contextualização, que retrata a situação da juventude no país, cabe uma elucidação acerca do que nos motivou, primordialmente, à elaborar o presente artigo, que objetiva contribuir com a discussão sobre um segmento que age, reage, resiste, enfrenta e morre tentando sobreviver, a juventude negra. Ressaltamos que nossa pretensão não é encerrar o debate de uma questão, que é histórica, sobre a violência contra a população negra, considerando que, o processo de construção de uma sociedade mais justa e igualitária, versada na Constituição que rege o Brasil, está ainda em construção e requer, para além de participação política, envolvimento e compromisso com uma causa que diz respeito à todos brasileiros. Assim, pensamos que nossa contribuição tem a ver com a possibilidade de somarmos esforços na dura empreitada de abrir e pavimentar uma estrada que mude a rota, de morte, da juventude negra.

Nesse sentido, cabe informar que nossa base para este artigo será o Trabalho de Conclusão de Curso realizado em 2007 pelas alunas[4], do curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica, intitulado:Desaparecidos de Maio de 2006: Uma História Sem Fim Um Desafio Para o Serviço Social na Perspectiva de Direitos Humanos São Paulo”, que objetivou fazer um estudo acerca e o conflito entre PCC e Polícia no estado de São Paulo, mais especificamente sobre as pessoas desaparecidas durante este episódio. Um aspecto que chamou a atenção das autoras e que será aqui evidenciado diz respeito ao fato de que os familiares dos quatro[5] jovens desaparecidos buscaram e encontraram na religiosidade uma forma, ou caminho, para manterem-se dignamente humanizados. Ficou perceptível, durante as entrevistas com as famílias, a fragilidade e até ausência do poder público junto aos familiares dessas quatro vítimas de “desaparecimento forçado” que sentiram na pele o abandono do Estado, principalmente, diante da inexistência de investigações policiais. Consideramos importante dar ênfase ao fato de que às famílias, além de ser negado o direito à um último adeus, visto que há evidências de execução,  foi também imputado, de forma violentíssima, uma culpabilização às vítimas, ou falta de sorte, “estavam no lugar errado, na hora errada”. As instâncias acionadas pelos familiares, Polícias Militar e Civil, Instituto Médico Legal, órgãos ligados aos Direitos Humanos, Centro de Atendimento à familiares vítimas de violência, não cumpriram, sequer minimamente o papel que lhes era e é cabível. Baseando-se em dados oficiais: “Entre os dias 12 e 20 daquele mês, (maio de 2006) 493 pessoas foram mortas, e 4, até hoje, encontram–se desaparecidas”.

Durante a semana, do dia 12 a 20 de Maio, nos habituamos a ler e ouvir manchetes com o saldo de mortes. É válido ressaltar que o número de 493 mortos, apresentados pelo CREMESP, refere-se a todo tipo de morte por arma de fogo, ocorridos entre os dias 12 e 20 de Maio e correspondem aos dados dos 23 IML’s do Estado de São Paulo. (...) Enquanto o CREMESP (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) contabiliza 493 mortes entre os dias12 e 20 de Maio, o Ministério Público menciona 243, relacionadas efetivamente ao evento e a Secretaria de Segurança Pública assume somente 140 casos. (cf. pp.46-47 do TCC)

Vale ressaltar que, em virtude do envolvimento direto de uma das autoras deste trabalho de conclusão de curso com um dos desaparecidos[6], o estudo foi realizado com três famílias.
Cabe aqui apresentarmos algumas características comuns às quatro vítimas de desaparecimento forçado: homens, jovens, negros, moradores de regiões periféricas e, de acordo com a pesquisa, as famílias dos três desaparecidos “têm um histórico de violência, que se expressa de diversas formas” e buscaram e encontraram na religiosidade um caminho para continuar sobrevivendo com dignidade.

“Estudos recentes mostram que as vítimas mais frequentes de homicídio são adolescentes, meninos, afrodescendentes, geralmente fora da escola, que vivem em comunidades populares de grandes centros urbanos.[7]

No relato de cada familiar foi notado, pelas autoras, que permeia um sentimento de indignação frente à ação, ou falta de ação, do poder público, logo, pensamos ser pertinente destacar algumas falas, iniciando com a fala de uma esposa, seguido do relato de um pai, e por derradeiro, as falas do casal, pai e mãe:

Fala da esposa

Primeiro eu fui à delegacia de Parelheiros, depois no DHPP... Eu fui no DEIC,eu fui em albergues. Fui até na Praça da Sé, eu via as pessoas deitadas lá, eu achava que era ele. Na segunda-feira eu fui no advogado. O advogado que cuida do processo dele falou que se foi a Força Tática ele estava morto.(...) Eu só queria uma resposta, eu queria entender. Porque se eu não entender como eu vou explicar para os meus filhos. Antes, quando o Ronaldo estava preso, eu falava que ele estava no Japão. Depois a professora falou pra eu não mentir, pra falar a verdade, mas que verdade? Durante a entrevista, Fernanda perguntou para a filha Yasmin, onde está o seu pai? Yasmin respondeu: no céu.(82 - 83)

Eu comecei a ir em outras igrejas, Assembléia de Deus, ou Deus é Amor,
depois do que aconteceu com o Ronaldo, tentando encontrar uma resposta, uma saída. Eu fui até em um terreiro. Eu fui em uma mulher que faz revelação, eu levei a foto da minha mãe, que já morreu, e levei a foto dele. Primeiro eu mostrei a foto da minha mãe e ela disse que esta não está mais entre nós, aí eu mostrei a foto do Ronaldo e ela disse que ele tava preso em uma jaula, mas que Deus ia mandar um anjo lá pra ajudar ele. Por isso que eu acho que ele ta vivo. Ele não pode estar morto, mesmo ele tendo feito muita coisa errada. Mas aí eu parei de ir na igreja, não sei (83)

Fala do pai

Já tive muita perda na família. Perdi um irmão, depois perdi meu pai, minha
mãe, perdi um filho também. Ele tava na barriga da mãe e nasceu morto e o Diego agora, a mãe dele, depois ele, ai foi abalando um pouco minha cabeça. Eu passei na psiquiatria, o médico falou pra eu tomar remédio, mas eu não tomo não, eu tomo cerveja, ficar dependendo de remédio. (87)

(...)Olha, o Diego ta usando droga, assim, assim, eu quero internar ele em uma clinica para dependente químico e brigando no conselho tutelar, no instituto aqui, tudo na área infantil de Guarulhos, ai ninguém me ajudou em nada. Fui no juiz, pedi pro juiz, ele falou também “não tem que ser voluntário”. Eu falei, pô, eu já respondo com tudo pra ele, porque ele é menor, eu to pedindo pra internar ele, vocês não quer internar. “não, tem que ser voluntário”. Eu briguei com o juiz lá, tive o maior arranca rabo lá. Eu falei, pó,o moleque ta dependente, como é que ele vai ser voluntário! Ele não vai pó, eu to pedindo uma ajuda para vocês.(87)

Eles nunca se interessaram. Ai, depois que ele sumiu, ficaram me mandando intimação para me cobrar. Eu falei, pô, eu fui atrás de vocês, vocês não me ajudaram, agora que o moleque sumiu fica enchendo o saco, ta me cobrando o quê? Então, eu não consegui tirar ele desse caminho. Peguei ele duas vezes, dei um coro nele, mas não adiantou nada,(88)


(...)Tava olhando carros lá no Bosque Maia quando ele sumiu. Tava ganhando dinheiro pra olhar as carroças. Ele ganhava um dinheiro lá, ai ele falava pra mim. Pai hoje eu tirei R$40,00, hoje eu tirei R$80,00. Ele ficava olhando carro lá as vezes o dia inteiro, até a noite, mas ai ele começou a perder dinheiro por causa das drogas, pra fazer rateio. Ele sumiu nesse local que ele trabalhava.(89)

(...)bateram de pé junto que foi a PM, foi a PM, (...), quando aconteceu isso eu fui lá e peguei um por um. Eu peguei nome completo, RG, data de nascimento, eu peguei tudo. Eu peguei e levei pra polícia e depois eles me pediram esses dados. (...) eu não dei o nome, mas acho que eles descobriram foram lá e intimidaram ai, quando foi na Corregedoria , eles falaram, não, o Diego e o Everton entraram dentro do carro e foram pra praia. (...) A polícia pergunta. Vocês viram o número da viatura. Eles falam que não, mas eles viram. Eles tavam lá direto, direto. Toda área tem uma viatura que responde só pela aquela área, então a polícia sabe quem usa droga, quem não usa. A mesma coisa é eles, eles vêm a viatura e sabe quem que é. Tem viatura que tem cara matador, então todo mundo conhece, tem o número da viatura, a primeira coisa é o número. Tem uma viatura que é... que é um japonês que é comandante, ele mata mesmo. Então, a primeira coisa que ele vê é o número, vê aquele cara, que é japonês, todo mundo sabe, mas eles não falam com medo, mas todo mundo sabe. (89)
(...) foi a Força Tática. Na Força Tática os policias usam boina também. A viatura é são-paulina, uma blazer. A ROTA é mais respeitada, mas eles matam também. Agora, naquele dia, as testemunhas falaram que foi a Força Tática.(90)

A investigação eu fiz sozinho. Fui atrás das testemunhas, só que eles falaram pra mim. Você pode falar pros caras que a gente viu, mas pra eles a gente vai falar que não viu nada. Pra mim falou que viu, mas quando a Corregedoria foi lá. Eu falei pra eles, eu não posso omitir informação deles. È meu filho que eu to procurando. Eu vou falar que eu conversei com você, que fosse viu, que você foi testemunha, ai beleza, anota meu nome, pega meu RG. Ai falou pra mim, quando os caras vier aqui eu vou falar que eu não vi nada. Teve algumas testemunhas que foram na Corregedoria testemunhar, outros não foram. Quer dizer, o número todo mundo viu, mas ninguém quer falar.Depois desses três meses que eu fiquei andando por ai, eu perdi minha moto por causa disso. Minha cabeça também não tava boa pra isso. Fui só acumulando dívida sobre dívida. Eu só queria, só achar ele.(92)

No começo foi intensa. Eu fiquei três meses direto, procurando todo dia, todo dia.O primeiro lugar foi no IML Central, lá nas Clínicas. Passei primeiro em Guarulhos e depois fui pras clínicas. Na delegacia, fui mal atendido. A delegada nem olhou na minha cara. Não tem onde procurar mais, já um ano e quatro meses mais ou menos. (92)

Foi a polícia que criou essa situação, agora eles tão morrendo por causa disso, ai os bandidos matam eles, eles pegam quem não deve nada, que nem o Diego, porque o Diego saiu aquele dia na rua marcando, eles matam e vão apresentando o corpo, sabe como que é . No dia que a gente foi pro IML eu vi mais de duzentos corpos, todos mutilados. Eles não mataram só, eles judiaram, entendeu. Até corpo, putrificado em decomposição em fui ver também, na zona Oeste. Na verdade eu não vi os corpos, eu vi as fotos, mas eles mostram só o que eles querem, os que interessa, porque da primeira vez que fui lá e vi um quarenta corpos, daquela época, depois me chamaram, um mês e meio depois, eu fui lá , e eu vi mais fotos, da mesma época, ai eu perguntei : Porque vocês não me mostraram a primeira vez que eu vim aqui, as fotos dos corpos? Ah, é que não tava aqui, tava em outro IML desativado. Quer dizer, eles têm IML que mantêm a geladeira, mas não funciona aberto  ao público. (...) Esse fato de Maio ai, foi só o começo. Vai vir coisa pior ai pra frente.(93)

Casal: fala do pai

(...) nesse dia, (...) Eu tinha assim o meu coração trancado. Nesse dia a Daniela, não foi com ele, ela ia direto com ele, onde ele ia a Daniela ia junto, e ela até enfrentava as pessoas quando punham a mão nele, ela defendia ele, a gente via que até debaixo d’água ela defendia ele.. Aí às quatro horas, da tarde, ele se trocou. Aí, eu falei, filho, tá meio frio, o tempo estava nublado, filho é melhor se agasalhar um pouco, ele tava com uma bermuda, um tênis. Filho porque é que você vai sair? Hoje é dia das mães? É hora da gente estar presente, aí a minha mulher falou para a Daniela: – você não vai não, porque você tem que tomar conta das crianças! Aí a Daniela ficou tomando conta das crianças, depois que nós voltar da igreja, do culto, aí você vai. Ela não foi, mas depois ela foi. Mas ela ficou sabendo que a polícia tinha abordado ele uma viatura da polícia já tinha até ameaçado ele e ela. Quando ela tava grávida desse aí, ela tinha dado um tapa na cara de um PM, porque o PM deu um soco no meu filho, e ele (PM) não pode dar um soco em ninguém, polícia não pode dar soco em ninguém, eles tão pra por ordem de justiça, e essa viatura que abordou meu filho.(95)

Acontece que quando a gente tá num culto e Deus fala prá gente, meu filho não tá morto, tá em algum lugar, que Deus vai revelar pra gente e eu creio na palavra de Deus, e ele tá vivo, Deus falando, não é ninguém falando, não, eu vi ele em tal lugar, né? ...As pessoas que a gente conhece dentro da delegacia, os advogados assim, né, ajuda a gente também, no DHPP são muito bons,... na corregedoria também pra ver se achavam o número da viatura, que abordou meu filho, que sumiu com o corpo. Eu creio que meufilho ta vivo.(95)

É normal, eu também já passei por isso. Quando as pessoas não aceitam... quando as pessoas não tem Jesus, não conhecem a palavra de Deus, não vão entender que a gente não pode apontar o erro dos outros.(...) Eu ainda avisava : Filho você não precisa, você tem tudo.(..) De vez em quando eu passo a mão na bíblia, jogo uns quinhentos folhetos na bolsa e sumo no meio da cidade, pergunto pra um , pra outro. Olha você viu? Nada... Eu pergunto pra mim mesmo, Deus aonde o Sr. Ta, eu invoco, aonde o Sr. tá (...) ( choro ) Eu não gosto de falar nesse caso muito porque eu começo a chorar.(95 - 96)


(...)fui procurar o meu filho na delegacia de polícia, tava um rebuliço nesse negócio do PCC, aí um policial, que até eu conheço ele, ele até é cristão,(...) ele é da Congregação... deixa eu dar uma olhada pra você..., e eles dando geral em todo mundo, inclusive aquele dia eu fui humilhado na delegacia, encostava a gente na parede... eu falei assim puxa vida eu sou um ser humano. “Encosta aí velho, não sei o que...”, Aí que aquele policial disse: deixa eu olhar para você, porque o outro me tratou tão mal, “...não tá aqui, não te disse que eu procurei velho, já procurei velho, com esse nome eu não achei ninguém, não tem ninguém com esse nome”. O policial me acalmou, viu aquela situação, me acalmou e falou assim: “sem ninguém saber, eu sou cristão, eu sou da igreja, o senhor também é, o senhor é de Jesus, eu vou dar uma olhada pra você”. Aí foi lá dentro, ele demorou um pouquinho, aí ele entrou lá dentro, e disse que meu filho tava. Me disseram que ele ia descer pra penitenciária. Ai a hora que eu cheguei lá, no outro dia, pra levar uma roupa pro meu filho, eu voltei lá, e falaram que ele não tava ali não. Eu sai chorando de lá.(...) Ah, eu senti muita tristeza, . Aí eu fiquei aquele dia em casa, mas à noite eu fui no IML.(96)

Eu não gosto de falar muito, você entendeu, porque os caras... eu não conheço o PCC, você entendeu? A gente precisa tomar cuidado até com quem a gente fala. Até da polícia também. Não tenho nada contra a polícia também, mas eu convivi dentro da polícia. Quando eu entrei pra cadeia em 1992, a polícia quebrou três costelas minhas, e não me levou no médico.
(...)os ladrão cuidaram de mim, deram remédio, a polícia não deu uma assistência, eu andava assim, que nem galo destroncado, eu soltava sangue pela boca.(...) Eu fiquei três meses na cadeia, depois a polícia me levou no Pronto Socorro, pra não dar o que? Como é que chama? Pra não dar exame de corpo de delito? Fui fazer exame de corpo de delito depois de 4 meses. (...) Ah, eu acho que isso aí, o pessoal do PCC, não tem nada a ver com esse negócio (...) mas a polícia, a senhora me perdoa, sou meio tarimbado dentro da... a senhora entendeu... eu passei na mão deles... então eu conheço mais ou menos... eu tava me arriscando a passar na rua, e a polícia estava abordando todos os caras de passagem. (97)

Pra ajudar a procurar ele... apoio às crianças... qualquer tipo de apoio de algum órgão? Ou mesmo pra procurar? (...) Procurar só o DHPP, porque lá eu reclamei de pagar condução, da dificuldade da minha mulher pegar as crianças no colégio. Aí mandavam buscar a minha mulher, levavam, e pra trazer deixavam ela na Armênia, ela veio.(...) O DHPP também me levou, que eu falei que não ia, eles me ameaçaram também... foi na Corregedoria que ameaçaram eu, que qualquer coisa ia ter que ... dar depoimento no ... não posso ficar vendo essas falhas na minha frente, não pela falha, mas pela pessoa que não trabalha direito. (...) Aí eu fui lá, na Corregedoria, e metrataram bem, é a obrigação deles mesmos, tratar a gente bem. Depois que a Daniela foi dar o seu depoimento, falaram que não tinha jeito de buscar de jeito nenhum, se ela quiser, ela que tinha que ir, que era obrigação dela, não tinha essa de querer.. por que a ajuda é nossa, porque a família e nossa, começaram a falar uma pá de coisa. Me deram uma canseira quando eu fui dar um depoimento, eu cheguei lá era umas duas e pouco da tarde, sabe que horas nós saímos de lá? Nove horas da noite. (...) Agora ajuda de prefeitura, de assistência social, essa coisa toda, aqui em casa não veio ninguém falar nada não.(98)

Sinto desejo de ficar mais próximo de Deus, de ficar mais próximo da palavra. Eu fico nervoso e tudo, mas a gente tem que ficar mais próximo de Deus. É só Deus, não adianta eu correr com o copo, não adianta eu correr pro vizinho, não adianta discutir, não adianta brigar, tem que correr o mais próximo de Deus. (...) Religião pra mim não significa nada. Dentro da
bíblia tá falando. Essa religião é Deus, é a palavra de Deus, a bíblia.(.)Não siga religião, siga Deus, siga a bíblia, a palavra de Deus, é pensamento de Deus, é a bíblia.(98 - 99)

Casal: fala da mãe

 se eu não tivesse na presença de Deus, eu não sei se agüentaria o que estou passando. Porque todo dia de manhã eu peço pra Deus, a gente tem que pedir pra Deus segurar a mão da gente. O que eu tenho aprendido é assim: o quê nos dá força é ele. Porque senão, se não tivesse ele na vida da gente, a gente não teria força, porque a gente fica vendo as coisas, e pensa: “Meu Deus eu estou passando por tudo isso por que?”. A gente ora e se apega com Deus, eDeus dá força pra gente. Porque a gente fica imaginando tanta coisa que está acontecendo, que depois que a gente pensa em Deus, tem um hino que fala  que tudo é permissão de Deus, porque você vê aquele avião que morreu todas aquelas pessoas, se Deus não permitisse aquilo, não morreria ninguém. Então as coisas que estão acontecendo hoje é tudo permissão de Deus. Então religião prá mim, prá mim, eu acho que não é religião, é Deus. Porque eu falo todo dia: “Senhor segura na minha mão”. Eu sou falha, mas, todo dia, quando eu penso que eu estou meio assim, caindo eu ligo a televisão ou o rádio, sempre tem uma palavra que fala. Eu imagino assim, se eu fosse... eu só tenho ele, e tenho essas duas bênçãos aí, né. Porque eu não sabia que ia acontecer tudo isso. Porque antes, antes, de acontecer as coisas, Deus sabe o que vai acontecer na nossa vida.Porque a religião é Deus. A gente tem que orar todo dia.(...) Pra mim é assim: não é a religião, é Deus que dá força pra gente.(99)

                        Se não tivesse na presença de Deus, sempre tem alguém apoiando você,
dando uma palavra, te ajudando, não é assim, sempre tem uma pessoa com uma palavra amiga. Porque às vezes a família da gente, quando está passando por uma situação, a família não dá apoio, mas se você chegar na igreja, orar, sempre tem um irmão da igreja que te dá apoio.Aí a gente fala: Vale a pena pedir a Deus, mesmo passando por isso.(...)esperar, esperar, estamos a serviço de Deus, porque nada impede, né?(...) tem que ter fé em Deus. Porque não adianta a gente esperar do homem, do pastor. A gente não pode esperar ninguém, porque tudo bate um desespero, a gente fala: “Meu Deus porque você deixou tudo isso acontecer?” Está no controle da mão dele, né? É a nossa vida, né? A gente tem que agradecer por dormir, por acordar.(100)

Conforme análise feita pelas autoras, com base nas entrevistas, especificamente em relação à questão da religiosidade, cabe aqui fazer alguns destaques: os três familiares recorreram à religião de formas distintas, ou seja, como uma possibilidade de obter alguma resposta frente, a tamanha incerteza, a religião não foi a única alternativa, servindo, talvez, como uma válvula de escape, para lidar com seu sofrimento e a fé em Deus como a única coisa possível no momento.

As autoras chamam a atenção para um fato que será introdutório para uma discussão que intentamos fazer: “as quatro famílias não estão articuladas. Embora tenham percorrido o mesmo caminho, em busca dos entes queridos, encontram-se atualmente isoladas umas das outras”.(105-106)

Assim, consideramos pertinente apontarmos alguns resultados da árdua luta do movimento negro pela eliminação da discriminação racial e promoção da igualdade. 

A luta do Movimento Negro

A luta do movimento negro, apesar de ser oficialmente relatada, com base em estudos acadêmicos, tendo início no século XX, começa a partir da captura do homem negro pelo homem branco, em África e escravização em solo desconhecido. Podemos ter esta idéia questionada ou até contestada, mas não é possível despreza-la, pois assim estaríamos negando todo processo de resistência criado para lutar contra o sistema escravocrata que germinou na pluralidade da senzala, onde amontoavam-se povos africanos, falando línguas diferentes e floresceu nos quilombos.

Em 1984, surge um dos primeiros órgãos dentro do aparelho do Estado para cuidar das questões relacionadas à discriminação racial: Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra. Criado por ação política dos negros foi o marco inicial de uma nova forma de atuação no combate ao racismo.

Em 1992, é criada a Coordenadoria dos Assuntos da População Negra, CONE, com a função de formular, coordenar, sugerir e implementar políticas públicas de ação governamental, para suprir as necessidades específicas da população negra, visando a prevenção e o combate ao racismo e a promoção da igualdade. A CONE instrumentaliza suas ações pautada, basicamente, em dois eixos:  Programa de Combate ao Racismo e Programa de Ações Afirmativas. Em relação ao programa de combate ao racismo, além de provocar e fomentar o debate sobre a discriminação racial, por meio de oficinas, cursos, entre outras ações, a CONE implementou, no ano de 2009, o Centro de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate ao Racismo. O Centro de Referência é um serviço que presta atendimento social, jurídico e psicológico às pessoas que foram vítimas de discriminação racial e que intencionam denunciar este tipo de violência. Com vistas a promover a igualdade, a CONE tem firmado parcerias e convênios com instituições de caráter educacional visando oferecer bolsas de estudo, em cursos profissionalizantes e de idiomas, aos jovens negros. Alem das ações citadas, e objetivando contribuir no processo de implementação da Lei 10.639/03, a CONE criou o Fórum do Ensino Superior, com o objetivo de promover um debate, nas instituições de ensino superior, acerca da lei supracitada. No I Fórum, a CONE contou com a participação de 10 Universidades e no II Fórum participaram 18 Universidades. É possível considerar o Fórum como um espaço de troca de experiência em relação às ações efetivadas nas Instituições de Ensino Superior, visando ao cumprimento da Lei 10.639/03.

Em 2001, foi realizada a Conferência Mundial contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas, em Durban, África do Sul, o que significou um avanço nas discussões acerca da dinâmica das relações raciais no Brasil.

Em 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), uma conquista do movimento negro, a questão racial é incluída como prioridade na pauta das políticas públicas do País.

Em 2004, o Ministério da Educação criou a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, que tem, entre seus desafios, desenvolver e implementar políticas de inclusão educacional, considerando e valorizando a diversidade étncorracial, cultural, de gênero, social e regional. Na política educacional, a implementação da Lei 10.639/03, significa estabelecer novas diretrizes e práticas pedagógicas que reconheçam a importância dos africanos e afrobrasileiros no processo de formação nacional.

Após muitos anos de lutas, foi aprovado pelo Senado brasileiro, em 16 de junho de 2010 o Estatuto da Igualdade Racial garantido direitos à população, entretanto omitiu-se do texto as questões referentes às cotas raciais em universidades e empresas. Consideramos emblemática a fala do ex-ministro da SEPPIR, Eloi Ferreira de Araújo, na apresentação do estatuto:

O sucesso de tais políticas públicas depende da reeducação das relações entre negros e brancos, relações étncorraciais, bem como de trabalho conjunto, articulação entre processos educativos escolares, políticas públicas, movimentos sociais, não se limitando à escola.

Entendemos que o exercício democrático pressupõe que a sociedade participe, de diferentes formas, dos processos que visam atender as demandas sociais. Assim, a política pública é entendida como uma construção coletiva onde a sociedade trem importante papel propositor e de monitoramento.

Compartilhamos com CHAUI, quando ela afirma que: “A garantia do poder é apenas a ação do sujeito político, que deve encontrar a ocasião oportuna e agarrá-la”.(2000:24)

Políticas Públicas com recorte racial

Regido por uma constituição pautada nos princípios da igualdade, na construção de uma sociedade livre e justa, o Brasil mostra um comprometimento com os princípios da prevalência dos direitos humanos demonstrando uma adequação da legislação nacional aos valores conclamados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Contudo vemos que o cunho generalista destes valores devem ser apenas alicerces para a construção de políticas públicas específicas para a redução de problemas sociais pulverizados na sociedade brasileira, desta forma garantir que os direitos explicitados em leis sejam realmente parte da vida de todos cidadãos e cidadãs.

Políticas públicas são ações que visam a garantia dos direitos coletivos, ou seja, dos direitos sociais. Tais ações têm por intento dar conta de demandas que surgem no cotidiano de determinada região. As políticas públicas estão ligadas à saúde, à educação, ao transporte, entre outros.

Apesar de o debate sobre Políticas Públicas parecer uma discussão recente, o projeto de branqueamento, que visava eliminar, gradativamente, a população negra, foi atrelado à uma política de incentivo à imigração, principalmente de italianos, e à promulgação da Lei nº 601/1850, chamada de Lei de Terras, que pôs fim ao reconhecimento de posse e definiu a compra como única forma de aquisição de terras, impedindo o acesso à terra para os trabalhadores pobres, os ex-escravos e seus descendentes.

A história da população negra no Brasil concentra especificidades sociais, econômicas e políticas que oferecem pistas sobre como ela foi empurrada para a base da pirâmide social brasileira, realidade que é apresentada com freqüência por institutos de pesquisa como IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e IPEA (Instituto de Pesquisa de Economia Aplicada). Também é possível encontrar análises e estudos que discutem essas informações nos âmbitos da história e da sociologia que permitem verificar alguns dados que podem explicitar o processo de inserção desigual do negro na sociedade brasileira. A construção social da pobreza implica uma soma de carências de capitais: econômico, educacional e social, tomados aqui como os principais. Essas carências também são apontadas pelos números ao longo da história.

Ainda que tenhamos avançado muito nas conquistas de direitos e consolidações em políticas públicas direcionadas à população jovem, percebe-se uma necessidade de maior empenho no combate à exclusão social e discriminações por raça, gênero, orientação sexual, religião e classe social. Além disso, é preciso uma atenção especial para a elaboração de políticas que sanem os problemas amplamente discutidos no presente artigo sobre a preocupante violência contra a população negra jovem.

Entendemos que o papel do Estado é primordial no enfrentamento das desigualdades aviltantes que invibializam a concretização de um projeto de sociedade fundado em princípios democráticos.

A cultura Hip Hop como instrumento de mobilização e difusão da religiosidade

O processo de luta da população negra foi marcado, também, pela participação individual, de grupos e movimentos da sociedade com diversas iniciativas que foram empreendidas dando visibilidade à luta, inclusive com dimensão internacional e, não menos relevante, várias ações foram e são efetivadas em âmbito e que fazem a diferença para negros e negras que têm os direitos violados e distantes do pleno  exercício das cidadania, sofrendo, de forma perversa, em uma sociedade tão excludente.

Nesse sentido, entendemos que a cultura produzida nos guetos, favelas, e periferias são conseqüências das experiências vividas e acabam na maioria das vezes não sendo documentadas ou mesmo usadas como instrumento de inclusão na educação da parcela mais carente da comunidade “marginalizada” aumentando o abismo da desigualdade.

A cultura Hip Hop surge nos Estados Unidos nos guetos da cidade de Nova Iorque na década de 60 a partir de influências de músicas afro descentes como o soul e o funk e formam quatro vertentes: os MCs, os Djs, o Break e o Grafite. As letras inicialmente retratavam o cotidiano das periferias estadunidenses como as desigualdades, descaso dos órgãos estatais, falta de serviços públicos, como escolas de qualidade, assistência média e opções de lazer.

Esse movimento está inserido em um contexto de crises conseqüentes do processo de globalização que “estabelece uma nova relação entre as culturas locais e a cultura global” (SOUZA, 2007). No século 20 vemos um questionamento da exclusão característica da ordem mundial vigente como uma forma de resistência à modernização capitalista principalmente em países latino americanos que sofriam com os regimes autoritários e tecnocráticos neste período. A globalização que se agrava neste século traz consigo uma maior interação entre os países, entretanto, por ser pautado pela economia e relações mercadológicas, gera uma individualização e segregação entre as relações interpessoais. (Burity, 2001).

Segundo Stuart Hall que trabalha a questão da crise de identidades no mundo contemporâneo, a sociedade mundial esta presenciando um paradoxo conseqüente dos avanços globalização, vemos a emergência das diferenças em uma busca por particularidades, mas por outro lado, a união das culturas com a imposição de hábitos (HALL, 2004, p.7). O Hip Hop estadunidense pode ser citado como um exemplo desse fenômeno por ter sido incorporado à indústria cultura de massas e disseminado em muitos países, onde vemos a transformação do conteúdo das letras, que antes era caracterizado pelo enaltecimento da cultura afro descendente com caráter de denúncia ou desabafo, e hoje são baseadas na apologia ao sexo, drogas e violência.

O hip hop brasileiro ainda que tenha incorporado alguns símbolos de uma cultura negra internacionalizada (SOUZA, 2007, pág. 7), apresenta muitas diferenças com o estadunidense, sobretudo por ainda possuir um caráter denunciativo sobre as péssimas condições de vida dos moradores das periferias brasileiras. Além disso, a cultura Hip Hop é a possibilidade de reflexão crítica, expressão e construção de uma identidade dos jovens da periferia pautados na “experiência profunda de frataria”, ou seja, há uma interdependência e solidariedade dentro do movimento inclusive no combate às droga e conscientização dos jovens a partir da arte. (SOUZA, 2007, pág 5).

Nesse sentido, pensando como se dá o processo de construção da Identidade dos jovens negros, é cabível enfatizarmos uma fala do professor Eduardo David de Oliveira:

“A discussão sobre identidade negra no Brasil é um tema polêmico e que traz em seu bojo outras problemáticas como a da discriminação racial e da situação social à qual o negro foi submetido neste país, tanto na época da escravidão como nos dias atuais.(...) num país formado a partir da mistura, ou melhor, conflito entre várias raças, de culturas díspares, não é um problema meramente cultural, mas de alcance político e social.(...) a identidade de um povo só pode ser reconhecida quando consideramos sua história e as singularidades desta história. Se podemos falar em uma identidade negra é porque existe uma história deste povo, que comunga experiências comuns, singulares, e que enfrentam problemas semelhantes no decorrer do tempo, e que solucionaram estes problemas de formas diferentes ou equivalentes, mas que, no entanto, permite uma aproximação existencial destes grupos. A experiência da escravidão unia as diversas etnias dentro de um mesmo universo cultural”.

É notória a contribuição de diversos mcs que utilizam o Rap como forma de estimulo a mobilização social, aumento da auto-estima e canal de propagação do evangelho cristão, afirmando, a grupos sociais de alta vulnerabilidade, valores e alternativas para combater situações adversas como é o caso do Rap A Verdade que Liberta da Mc Giselle Gomes Souza’ Nega Gizza”
Microfone na mão e um grito de alerta
Hip hop a verdade que liberta
Foi bom para mim e pode ser bom para você
Que está desesperado e não sabe o quê fazer
Se entregar ao mal seria fácil demais
Para a sociedade você vivo ou morto tanto faz
Fé em deus e na força divina,
Seguindo em frente o pensamento sempre acima
”.
(.......) Mente aberta tomando a atitude certa, hip hop a verdade que liberta. Me deu um toque, me tirou da vida errada, fez minha mente trabalhar quando ela estava parada”.

Nessa música a compositora ressalta o microfone como instrumento de denuncia e ao mesmo tempo em que fala sobre a “verdade que liberta” manifesta valores cristãos que estão enraizados na sociedade Brasileira como não se entregar ao “mal” e ao desespero, manter a ter fé em Deus e permanecer vivo.

Poderíamos aqui ressaltar outros tantos artistas e grupos que trabalham de forma mais efetiva a fé em Jesus Cristo como, por exemplo, Grupo Ao Cubo, Racionais Mcs, Apocalipse 16, Expressão Ativa entre outros, porem escolhemos a letra citada anteriormente por acreditarmos que ela traz resumida outros tópicos que são o grande trunfo do Hip Hop como cultura urbana, critica, negra, jovem e em muitos caso cristã para promover a “paz , o lazer saudável , a afirmação da identidade sócio-cultural”.

É no universo cultural que as pessoas inventam os sonhos realizam mudanças fictícias porem necessárias para um mundo melhor por meio da arte esta que se fundamenta no ponto de vista do artista não sendo possível às manifestações criadas em outros lugares que não sejam os gueto e periferias ser fiel ao desejo dessa parcela da população.

“A cultura apareceu para construir no campo arrasado, para levantar do chão tudo que foi deitado. E descobrir, enquanto é tempo, que o importante é ser cidadão, é ser gente.
Historia é gente. Brasil é gente. E descobrir e reinventar gente é a grande obra da cultura. Uma obra que será nossa. Será porque a cultura continua a pensar, discutir reunir transformar. A arte tem o poder de transformar, nem que seja primeiro na ficção, na imaginação.” (Folha de S.Paulo, 20 de Setembro de 1993)”.

Vale finalizarmos este artigo com um release de um rapper que, acreditamos, presta valiosa contribuição no processo construção da identidade de muitos jovens negros, pois se tornou uma referência de vida àqueles que à tem como um fio.
  
“O nome “Luo” foi escolhido pelo próprio rapper para se rebatizar, prática que é muito comum entre os rappers, já que eles, muitas vezes, têm nomes e sobrenomes herdados de antigos donos de escravos de procedência européia. Não sabem na sua maioria, nem mesmo o significado da origem de seus próprios nomes. “Foi em busca de identidade própria que me rebatizei, embora seja mestiço sei que sou mais africano do que qualquer outra coisa, então queria algo que me religasse com a África. Luo é o nome da segunda maior tribo do Quênia. Também coloquei este nome porque gosto muito da lua. Acho a lua muito bonita mesmo, é ela que clareia a noite e nos traz luz na escuridão. Mas a lua não tem luz própria, sua luz é um reflexo do sol, assim como a minha pequena luz é um reflexo da luz de Deus. Espero ser o Luo das madrugadas sombrias e levar um pouco de luz para a vida daqueles que estão perdidos nas trevas mundo afora”, afirma Luo.” (http://www.7tacas.com.br/ 24/03/2011 ás 10h30)
  
Algumas considerações 

Considerando a relevância e complexidade da questão apresentada, cabe informar que nossa intenção não foi esgotar o assunto, mas tentar provocar uma discussão de extrema importância e que tem a ver com toda a sociedade.

Importa acentuar a fragilidade do Estado frente às demandas sociais no tocante ao cenário de desigualdades fundadas no processo de escravização do povo negro e alimentadas por idéias de cunho racistas que servem de amalgama à manutenção de um sistema interessante às classes dominantes.

Pensamos que, dado o caráter estrutural da questão abordada, algumas análises entoadas sob uma perspectiva pessimista, podem minar qualquer possibilidade de intervenção que verse sobre mudanças favoráveis àqueles que são mantidos, historicamente, marginalizados e até excluídos do processo de distribuição da riqueza produzida no país. Uma exclusão que coloca em prejuízo o exercício de cidadania, visto que dificulta a acessibilidade à recursos e serviços previstos no rol de direitos sociais conquistados, à custa de árdua luta, e instituídos na Constituição de 1988.

Entretanto, quando nos referimos à tímida ação do poder público, a intenção é provocar este órgão a tomar para si uma responsabilidade que não pode ser transferida para a sociedade civil de maneira integral, cabendo tal contribuição poder ter um caráter de complementariedade.

Destarte, acreditamos que, em um contexto marcado por diversas manifestações de violência que atinge, sobretudo e de forma aviltante, a população negra, é impossível desprezarmos as iniciativas não governamentais, sendo antes desejável o fomento à tais ações, no sentido de atender a demandas específicas que requer intervenções urgentes visando ao rompimento de ciclos que se reproduzem aceleradamente, como por exemplo a violência perpetrada contra os jovens negros. 
  
Bibliografia

BURITY, J. (2001). Globalização e Identidade: desafios do multiculturalismo. Disponível em , acessado em 16/09/2010.
CASTRO, Jorge Abrahão de; e AQUINO, Luseni (orgs). Juventude e políticas sociais no Brasil. Texto para discussão, n. 1335, Brasília: IPEA, abril 2008.
CHAUI, Marilena Sousa. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 8ª. Edição, São Paulo, Cortez, 2000.
Enzensberger, H.M. (1995) Guerra civil, São Paulo: Cia das Letras.
Estatuto da Igualdade Racial, Brasília, 2010.
Folha de S.Paulo, 20 de Setembro de 1993.
HALL, S. A identidade cultural na pós–modernidade. Rio de Janeiro: DPeA Editora, 1997.
MELO, Eduardo Rezende. Direitos Humanos de crianças e adolescentes no Brasil: Dilemas de um cenário cultural em transformação. Venturi, Gustavo (org.) 1ª ed. Brasília – DF. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2010.
OLIVEIRA, Eduardo David de, Cosmovisão Africana no Brasil: Elementos para uma Filosofia Afrodescendentes. http://afrobrasileira.multiply.com/journal/item/9.

 http://www.7tacas.com.br/ 24/03/2011 ás 10h30.
  

[1] http://www.rededepesquisaaps.org.br/UserFiles/File/Unicef_relat_Brasil.pdf

[2] http://www.sangari.com/mapadaviolencia/pdf2011/MapaViolencia2011.pdf

[3] CASTRO, Jorge Abrahão de; e AQUINO, Luseni (orgs). Juventude e políticas sociais no Brasil. Texto para discussão, n. 1335, Brasília: IPEA, abril 2008
[4] Adriana de Lourdes Szmyhiel Ferreira e Francilene Gomes Fernandes.
[5] Número oficial.
[6] Francilene Gomes Fernandes é irmã de um dos desaparecidos de maio.
[7] http://www.rededepesquisaaps.org.br/UserFiles/File/Unicef_relat_Brasil.pdf

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