terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Educação que torna o aluno sujeito politizado

Reproduzimos, com adaptações, interessante artigo de divulgação científica de Glenda Almeida, da Agência USP de Notícias, intitulado Adolescente que conhece suas origens é agente político, publicado em 2/12/2010:

Alunos que não são ensinados a relacionar o conteúdo dos livros à história de sua própria comunidade não se sentem pertencentes à humanidade, facilitando a aceitação de rótulos e estigmas como o de “favelado qualquer”.

Pesquisa da psicanalista Maíra Ferreira, realizada na Faculdade de Educação (FE) da USP, demonstrou que é possível mudar esse quadro através do uso de elementos do cotidiano dos alunos, como a música, a poesia e os desenhos, para que eles possam reconhecer elos com seus antepassados. Desse modo, tornam-se capazes de se afirmarem como verdadeiros sujeitos políticos “da sociedade” e “na sociedade”.

Em sua dissertação A rima na escola, o verso na história: um estudo sobre a criação poética e a afirmação étnico-social em jovens de uma escola pública de São Paulo, Ferreira aponta a escravidão como a “barbárie brasileira”, cujas consequências ainda subjugam a sociedade, principalmente quando o assunto é pobreza, discriminação e afirmação étnico-social.

No início de seu trabalho na escola pública da favela Real Parque (São Paulo/SP), Ferreira percebeu que, nos horários vagos entre as aulas, os adolescentes, amantes do rap, rimavam, improvisavam e desenhavam com muita facilidade, demonstrando capacidade crítica, inclusive em relação aos temas escolhidos em suas artes. Além disso, o dom da oralidade também chamou atenção da pesquisadora. Contudo, ao mesmo tempo em que apresentavam tão rica manifestação cultural, recusavam suas origens no ambiente escolar.

Segundo Ferreira, essa recusa denuncia a “presença e permanência de políticas discriminatórias brasileiras desde a época dos cativeiros”. A escola, ao não reconhecer e contextualizar a importância da história da comunidade que atende, e não a relacionando com o presente dos alunos, “perpetua a formação social e cultural do preconceito brasileiro”.

Os estudantes da Favela Real Parque são herdeiros culturais de famílias afro-brasileiras e indígenas Pankararu, oriundas do sertão de Pernambuco, que migraram a partir da década de 1950 para São Paulo, principalmente para trabalharem na construção do Estádio do Morumbi. Tendo em vista essa origem dos alunos, a pesquisadora procurou pelas possíveis relações entre a capacidade de rimar e improvisar do rap, e as produções culturais do cordel e dos repentes nordestinos.

Registros da viagem de Ferreira ao Nordeste, onde conheceu o cordel e o repente:

Em busca dessas evidências de relação entre culturas, Ferreira para a região do Brejo dos Padres em Pernambuco, onde pesquisou o cordel e os repentes sertanejos, como a cantoria de viola e o coco de embolada, expressões claras da tradição da oralidade, tão marcante no rap dos estudantes.

Com uma filmadora na mão, a pesquisadora andou pelas ruas nordestinas ouvindo e gravando declamações espontâneas: improvisos poéticos de farmacêutico, sapateiro, manicure, dentista, padre, crianças e idosos. “Em uma cidade chamada São José do Egito (PE) ouvi o seguinte ditado: Aqui quem não é poeta é louco e quem é louco faz poesia”, disse a pesquisadora.

Vídeos da pesquisa de campo em São José do Egito, onde a poesia está em todos os lugares:


Segundo a psicanalista, mesmo diante da violência social, a miscigenação étnico-social brasileira apresenta sua resistência: “das rodas de jongos e capoeira aos improvisos dos repentes e do rap está o movimento de resistência, apropriação e criatividade frente às políticas de discriminação existentes desde a escravidão”. Essa constatação é a prova de que durante a história do País não houve aniquilação da cultura dos povos que sofreram com tais políticas, e sim recombinação, reinvenção, recriação, ou seja, está aí um outro tipo de “marca humana” — no caso, o desejo de construir e não o de destruir.

Contudo, a “atualidade da escravidão brasileira” ainda aparece no cotidiano do brasileiro. De acordo com a pesquisadora, “a formação social brasileira está longe de elaborar e superar esse trauma que permeia as instituições de ensino e os espaços jurídicos do país”. Para isso, é essencial e possível ensinar aos alunos que eles podem e devem “atualizar as suas tradições” a fim de se apropriarem do passado, para construírem seus projetos futuros.

Um dos alunos traduziu muito bem o pensamento de Maíra Ferreira: “Já sei, professora. É pegar carona na tradição”.
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1 Comentários

1 comentários:

  1. Aprendizagem livre que permite a autoria de pensamento.... Só assim e isso tudo!!

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