O artigo a seguir, publicado em CD-ROM, foi apresentado no III Seminário Internacional de Linguística da Cruzeiro do Sul, na Unicsul SP, em 2009.
AS VOZES PRESENTES NO DISCURSO DO DICIONÁRIO E OS EFEITOS DE SENTIDO PRODUZIDOS
RESUMO: Analisamos o Novo dicionário da língua portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1975), apoiando-nos no instrumental teórico da semiótica narrativa e discursiva, constatando que a enunciação, nesse gênero discursivo, manifesta-se através de expediente que convoca três vozes distintas: a do enunciador-lexicógrafo, aparente nas definições das palavras-entrada; a de citações de autores as quais abonam certas entradas; e a que é atribuída ao senso comum, uma espécie de vox populi, observável na exemplificação de verbetes. Cada uma dessas vozes está relacionada à produção de determinado efeito de sentido, de acordo com a estratégia de persuasão do enunciatário, pressuposta no discurso do enunciador sócio-histórico.
Desse modo, na voz do enunciador-lexicógrafo, imprime-se o saber-fazer e o poder-fazer científico; as citações são encarregadas de atribuir veridicção ao texto, a par de, através de seu uso, produzir-se efeito de neutralidade; esses mesmos efeitos também são gerados com o uso de exemplos que, além disso, corroboram a afirmação de certos lugares-comuns defendidos no bojo do discurso do dicionário. Com base nesses mecanismos da sintaxe discursiva, o texto lexicográfico constrói-se enquanto objeto portador de verdade científica, assumindo, frente ao enunciatário-leitor, um contrato fiduciário de exposição dos fatos de maneira neutra, completa e objetiva – o que nos cumpre desvendar.
PALAVRAS-CHAVE: enunciação; semiótica discursiva; discurso lexicográfico; dicionário; metalexicografia.
Condições de produção-recepção específicas do discurso lexicográfico
O engendramento do discurso do dicionário é presidido por questões específicas de produção/recepção sobre as quais é importante tecer considerações.
Dentre as características específicas da enunciação da obra lexicográfica, destaca-se o fato de que – como reconhecem pesquisadores de linhas diversas – o dicionário é um produto pautado por arbitrariedades. Não é sem fundamento que Hausmann (1989, p. 40), enfatiza que “nous savons que dans le dictionnaire tout, absolutement tout, est arbitraire.”
Em metalexicografia, encontram-se observações sobre arbitrariedades relacionadas à gramática do dicionário, do ponto de vista estritamente técnico, como as seguintes, atinentes às palavras-entradas selecionadas para compor a obra lexicográfica, ao número de verbetes, e às referências das palavras-entrada:
[...] L’enregistrement d’un mot existant dans un dictionnaire, autrement dit son attestation, dependent de different facteurs: la nature et l’entendue du corpus, l’idéologie linguistique, les objectives commerciaux, et même une certain part d’arbitrarie. Il en est même du choix des acceptions enregistrées dans la microstructure. (MOK, 1983, p. 73.)
Um dicionário geral permanece geral, qualquer que seja o número das unidades de sua nomenclatura, contanto que ele respeite essa lei. Donde a coexistência de dicionários com nomenclatura de 5.000 palavras, de 20.000 palavras, de 50.000 palavras [...] devendo a nomenclatura mais vasta teoricamente conter todas aquelas que o são menos (o que não se verifica na prática por causa dos dados incertos sobre as frequências). (REY-DEBOVE, 1984, p. 65.)
[...] Em outro trabalho ligado à análise de rotulações em dicionários, Dumas e Lighter (1978) observam que os dicionários de inglês são inconsistentes, por exemplo, na descrição de expressões giriáticas. Para o Webster’s World New Dictionary a palavra chick (“mina”) é rotulada como slang (“gíria”) ao passo que para o Webster’s New Collegiate Dictionary não o é; do mesmo modo, a palavra junkie (“traficante de drogas”) é marcada com o rótulo slang no Webster’s New Collegiate Dictionary enquanto não é assim marcada no Random House Dictionary. Ambas as palavras, porém, são consideradas expressões giriáticas pelo AHDEL. (SCHMITZ, p. 42-3.)
É frequente encontrarem-se, em dicionários do português e de outras línguas, sinônimos para explicar o significado da palavra entrada, ao invés de uma definição muitas vezes o consulente vai conferir o sentido dos sinônimos referidos e os verbetes consultados remetem-no de volta à palavra de que partiu, num autêntico círculo vicioso. (BIDERMAN, 1984a, p. 35.)
Outros estudos apontam arbitrariedades de caráter ideológico, como as ligadas às representações ideológicas dominantes em determinada época e à subjetividade dos lexicógrafos:
Le dictionnaire – c’est un fait largement établi – est tenu de reproduire, en raison de sa nature didactique, et, avec plus ou moins de fidélité selon as personnalité, les représentations idéologiques dominantes de son époque, concernant la langue – dont plus ne parleron pas ici – et/ou le monde. (LEHMANN, 1989, p. 1.)
La necessite de vérifier les accusations féministes contre les discriminations de la langue a motive la recherche du témoignage des dictionnaires. On n’em attendait pás autant. L’idéologie conservatrice, la pensateur des traditions sont dominantes et évidents. Rapporteurs, reconducteurs, observateurs, les auteurs de dictionnaires, imprégnés de leur subjectivité et la collusion de celle-ci avec les mentalities generals aident à former des modèles culturels à leur tour. La variation des priorités d’une auteur à l’autre met en relief cette subjectivité et la potentialité de son influence plus ou moins imprecise sur le consultant. (BENHAMOU, 1986, p. 64-5.)
[...] A indiferença que a lexicografia demonstra para com sua própria metodologia é espantosa. Talvez os lexicógrafos sejam complacentes porque seu produto “funciona”. Mas é legítimo perguntar de que modo ele funciona, a não ser pelo fato de que os dicionários vendem bem. O fato de que na nossa cultura particular há grande demanda de dicionários monolíngües de definições, que incluem definições tão comuns que ninguém possivelmente iria procurá-las, é, por si mesmo, um interessante dado etnográfico. (WEINREICH, 1984, p. 104-5.)
Dans tous ces textes, marques d’énonciation et technique lexicographique concourent d’une manière extrêmemment lies au success de l’enterprise de broillage. Autrement dit, il est difficile de séparer ici technique et idéologie: tout se passé comme si, à l’interieur du discouurs didactique, se jouait un combat entre deux discours polémiques, le premier ouvert et repérable (anti-esclavagiste), et vaincu par l’autre (occultation et justification), en tant qu’il a à son service tout un appareil technique prétendument neuter. (DELESALLE; VALENSI, 1972, p. 101.)
À premier vie, le dictionnaire véhicle un langage clair, aisément décotable. Chacun propose une idéologie de fonctionnement qu’il a à faire, il est donc un element subjectif dependant d’un ensemble de facteurs assez variés comme le choix d’une norme culturelle, les pressions socials d’une classe dominante à un moment donné ou à autre, le lieu de son elaboration, etc. Cette subjectivité lui fera acculter ou interpreter volontairement ou non un certain nombre de concepts et de mots pourtant quotidiennement transmis dans les communications interindividuelles. [...] Ces censures dirigistes que le public impose, que les institutions forcent et les lexicographes font, ne son pas toujours volontaires, naives ou innocents, tan s’en faut d’allieurs. (BOULANGER, 1986, p. 7.)
Do ponto de vista da análise do discurso, as últimas apreciações correspondem – a nosso ver – às indicações mais preciosas sobre as especificidades da enunciação do dicionário, vindo ao encontro da concepção do mecanismo da enunciação como ato no qual se inscreve a intencionalidade, isto é, como instância de mediação, encarregada de colocar, em enunciado-discurso, as estruturas semióticas virtuais. O enunciatário-lexicógrafo, diante das virtualidades atinentes à técnica e ao ideário de mundo, atualiza aquelas que, ao passo em que criam o discurso lexicográfico (discurso criatura), conferem a este o atributo de intérprete das realidades da língua e das representações do mundo (discurso criador).
Dentre as considerações, acima transcritas, acerca do caráter do dicionário, merece destaque a observação de que a obra lexicográfica se investe de um cunho didático. E, nesse sentido, importa constatar como o consulente médio vê o dicionário, isto é, como o enunciatário social participa da produção/recepção desse discurso. A esse respeito, J. Rey-Debove (1984) observa que o uso do dicionário faz parte da aprendizagem artificial de uma língua, a par da aprendizagem natural – que se dá através da experiência prática da comunicação –, e que, embora o dicionário não corresponda a uma descrição completa do léxico, “a maioria dos usuários o creem, e as publicidades não procuram desenganá-los” (p. 63). Essa autora, no mesmo texto (p. 64), acrescenta que “o dicionário é um dos objetos culturais mais usuais e mais mal conhecidos” e, ainda, que “a dupla estrutura do dicionário [na medida em que ele fala dos signos e das coisas] faz dele uma obra de consulta e não um texto para ser lido do começo ao fim”.
Por um lado, então, o enunciatário do dicionário reconhece o caráter didático da obra lexicográfica e, nas palavras de Boulanger (1986, p. 19),
Le dictionnaire se transforme donc outil de formation, et sourtout de la bonne formation de ses utilisateurs. Son didactisme naturel se développe et il est le produit d’une pression sociale constante. Le public imposera des censures de plus en plus nombreuses que les institutions entérineront de par leur position de prestige et que les lexicographes confirmeront, puis contribueront à répandre. Les censures linguistiques servent de pretexte pour occulter non seulement certains types de mots, mais encora les choses non acceptées, non reçues par la societé et qui se cachent derrière les mots choquants. Les improbations lexicales naissent alora des contextes extralinguistiques tabouisés ou interdits par la société. Ces idées réprobatrices n’ont aucune difficulté à s’infiltrer dans les dictionnaires.
L’attitude métalinguistique d’une societé est intéressant em soi pour la philosophie du langage et l’historie des idées, mais sourtout, c’est elle que crée la norme. Le lexicographe, pour sa part, est à la fois utilisateur et producteur. C’est dire que cette étude du message lexicographique será menée d’un double point de vie: celui de l’encodeur qui est le lexicographe, et celui du décodeur, qui est le lecteur.
Nesse sentido, deve-se ter claro que o enunciador sócio-histórico nada mais é que um porta-voz do discurso dominante. A ideologia que se revela no discurso do dicionário não representa, necessariamente, a concepção pessoal de mundo que possa ter seu autor, “les dictionnaires soient polémiques est que l’information apportée reflete la pensée d’une classe sociale, d’une génération, d’une intelligenzia qui veut faire triompher une idéologie”. (REY-DEBOVE, 1971, p. 23.)
Projeções da Enunciação
Greimas e Courtés (1983) concebem a enunciação como a instância encarregada da passagem das estruturas semióticas virtuais para as estruturas atualizadas sob a forma de discurso. As operações, então efetuadas, constituem a competência do sujeito da enunciação, e “se a enunciação é o lugar de exercício da competência semiótica, é ao mesmo tempo a instância da instauração do sujeito (da enunciação)”. (p. 146) Na mesma obra, os autores afirmam que
é a projeção (através dos procedimentos aqui reunidos sob o nome de debreagem), para fora dessa instância [da enunciação], tanto dos actantes do enunciado quanto das coordenadas espácio-temporais, que constitui o sujeito da enunciação por tudo aquilo que ele não é; é a rejeição (através dos procedimentos denominados embreagem) das mesmas categorias, destinadas a recobrir o lugar imaginário da enunciação, que confere ao sujeito o estatuto ilusório do ser. (p. 147)
o enunciatário não é apenas destinatário da comunicação, mas também sujeito produtor do discurso, por ser a “leitura” um ato de linguagem (um ato de significar) da mesma maneira que a produção do discurso propriamente dito. O termo “sujeito da enunciação”, empregado frequentemente como sinônimo de enunciador cobre de fato as duas posições actanciais do enunciador e do enunciatário.
Do ponto de vista da desembreagem actancial, ou seja, do mecanismo pelo qual a enunciação projeta para fora de si os actantes (as categorias da pessoa) observamos que o discurso do dicionário examinado é construído segundo três perspectivas preponderantes: sob a forma de definições, de exemplos e de citações.
A opção de narrar a história de acordo com cada uma dessas perspectivas produz efeitos de sentido diversificados. Assim, as definições são assumidas pelo enunciador explícito (enunciador sócio-histórico), porta-voz do saber lexicográfico, o qual traduz, com objetividade e neutralidade a verdade científica.
Os exemplos são assumidos por uma espécie de voz do senso comum – a de qualquer partícipe da comunidade linguística – a qual, também com objetividade, narra a história, mantendo-se assim, a neutralidade do enunciador. E as citações são da responsabilidade e narradores (os autores citados) a quem o sujeito da enunciação delega o saber e o poder contar a história. Estes, por seu turno, subdelegam voz a narradores que participam ou não da história narrada, produzindo-se efeitos de sentido de objetividade ou de subjetividade, mas resguardando-se, ou antes, ratificando-se a posição neutra e objetiva do enunciador.
A opção de narrar a história de acordo com cada uma dessas perspectivas produz efeitos de sentido diversificados. Assim, as definições são assumidas pelo enunciador explícito (enunciador sócio-histórico), porta-voz do saber lexicográfico, o qual traduz, com objetividade e neutralidade a verdade científica.
Os exemplos são assumidos por uma espécie de voz do senso comum – a de qualquer partícipe da comunidade linguística – a qual, também com objetividade, narra a história, mantendo-se assim, a neutralidade do enunciador. E as citações são da responsabilidade e narradores (os autores citados) a quem o sujeito da enunciação delega o saber e o poder contar a história. Estes, por seu turno, subdelegam voz a narradores que participam ou não da história narrada, produzindo-se efeitos de sentido de objetividade ou de subjetividade, mas resguardando-se, ou antes, ratificando-se a posição neutra e objetiva do enunciador.
A ilusão fabricada pela desembreagem enunciva,[2] ou seja, a de que a enunciação está afastada do discurso, garante a imparcialidade do sujeito da enunciação, ocultando-se, desse modo, que este, na verdade, filtrou toda a história narrada, imprimindo-lhe, em face das opções que efetuou, um determinado sentido. Por outro lado, essa mesma ilusão funciona como expediente para persuadir o enunciatário (destinatário sócio-histórico do discurso) de que ele está diante da verdade inconteste: os fatos irrecusáveis que o dicionário comunica-lhe neutramente, através de um saber que transcende o indivíduo (o autor da obra lexicográfica) e que se embasa na ciência da Lexicografia.
Essa pretensa neutralidade não resiste diante da constatação de determinadas opções do enunciador-lexicógrafo no que diz respeito colocar em enunciado discurso virtualidades da macro- e da microestrutura do dicionário. Nesse sentido, registram-se no Novo Dicionário, com muita notoriedade, a discriminação de gênero, a discriminação etária, a discriminação racial, a discriminação de classe social e a discriminação religiosa.[3]
Por exemplo, no verbete a seguir, a abonação das diferentes acepções da palavra-entrada é feita através de um conjunto de exemplos nos quais está patente a opção implícita do enunciador por narrar a história da supremacia do homem em relação à mulher:
Gênio
3. Atíssimo grau, ou o mais alto, de capacidade mental criadora, em qualquer sentido: Dante é um poeta de gênio.
5. Indivíduo de extraordinária potência intelectual: Einstein é um gênio; Beethoven é um gênio da música.
6. Índole, temperamento: Impossível viver com ela: tem um gênio muito difícil.
Barata1. 2. Mulher velha; carocha.
Capoeirão. Diz-se de, ou homem idoso que, por efeito da idade, é pacato.
Cerne. 6. Pessoa velha, que não morre facilmente.
Xoroca. Velha ridícula, desfrutável.
Os exemplos e as citações que abonam as palavras-entrada, enquanto desembreagens internas, produzem, ainda, efeitos de realidade ou de referente, isto é, fazem crer que o discurso do dicionário copia a realidade: as vozes dos interlocutores na sociedade na qual se desenrola a história narrada. Nesse ponto, as observações de Biderman são reveladoras:
Aurélio afirma que utilizou um vasto corpus para extrair daí as abonações dos verbetes: 770 autores e 1.610 obras. Tais fontes de abonação incluem escritores portugueses e brasileiros desde o século XVI até os primeiros anos da década de 1970. [...] Da extensa lista citada extraem-se algumas conclusões. Os escritos compõem um corpus relativamente homogêneo com predomínio do literário e, portanto, não se lhes pode apor a etiqueta “autores dos mais desvairados gêneros” como assevera mestre Aurélio. [...] O Aurélio é um dicionário com tendência a constituir um thesaurus mas não se fundamenta em fontes escritas de todos os domínios do conhecimento humano. [...] Predominam os chamados modelos de linguagem, os clássicos, como Machado de Assis, Eça de Queirós. (1984b, p. 8-10.)
[...] Um dicionário deve fundamentar-se na recolha de dados léxicos e linguísticos para a constituição de um corpus representativo da língua escrita e falada. [...] Para a elaboração desse arquivo ou banco de dados léxicos, deve-se considerar um período de tempo que represente uma etapa da evolução da língua em que ela possa ser considerada relativamente uniforme. Um corte sincrônico pode recobrir o espaço de uma geração, ou seja, uns trinta anos. O banco de dados precisa incluir todas as variantes escritas da língua e não apenas a linguagem literária. (1984a, p. 29-30.)
A Editora Nova Fronteira apresenta o reconhecimento público da J. E. M. M. Editores – núcleo de assistentes de mestre Aurélio – que, após um esforço de cinco anos de pesquisa e elaboração de um dicionário moderno, vivo [...] (Grifos nossos.)
Entre enunciador e enunciatário, estabelecem-se as seguintes relações: o enunciador, enquanto destinatário-manipulador da história da narração, exerce um fazer persuasivo (fazer-crer) sobre o enunciatário, visando a convencê-lo da verdade de seu discurso e a estimulá-lo para a ação (fazer-fazer); o enunciatário, enquanto destinatário da história da narração, deve ler a história narrada, interpretando-a, em conformidade com a orientação que o enunciador nela imprimiu, e cumprindo sua parte no contrato que entre ambos se estabelece implicitamente.
Entre os meios de persuasão e de fazer-saber (interpretar) de que o enunciador do dicionário dispõe, destacam-se os exemplos e as citações que abonam as palavras entrada dos verbetes.
Graficamente já se diferenciam definições, exemplos e citações: as definições são grafadas em tipos ditos redondos, marcando a voz implícita do enunciador; os exemplos são impressos em itálico, como se proferidos por outrem que não o enunciador – como uma espécie de vox populi –; as citações, em tipo redondo, grafadas entre aspas, são transcrições de autores arrolados entre as fontes do dicionário e citados entre parênteses, após os trechos transcritos.
Consoante o ditado de que “a voz do povo é a voz de Deus”, os exemplos são dispositivos veridictórios da enunciação, levando o enunciatário a crer que se trata da expressão do consenso social a respeito da verdade dos fatos;[4] além disso, os exemplos funcionam como pistas que indicam ao enunciatário como ler a história narrada e advertem-no quanto a como deve proceder. A propósito, acompanhe-se a sequência de exemplos nos verbetes abaixo:
Homem. 7. Homem (4) dotado das chamadas qualidades viris, como coragem, força, vigor sexual, etc.; macho: Homem que é homem, não leva desaforo para casa.
Vingar. 15. Tirar vingança de ofensa recebida, ou de algo que é como uma ofensa; desforrar-se, desforçar-se, despicar-se: Não descansará enquanto não se vingar da derrota.
Vingar. 1. Tirar desforço ou desforra de; desforrar, desafrontar: Soube vingar a honra ultrajada.
Concupiscência. 2. Apetite sexual: “Quem me livrará (coitado de mim) da concupiscência, raiz e seminário de todos os males humanos?”
Ele. 1. Designa a 3ª pess. do masc. sing.: “o sangue de Xavier com ímpetos de mais acelerado, e ardente, e como .... mais adelgaçado no fogo do amor, ele por si se desfechou das veias.”
Fiar. 8. Depositar confiança; acreditar: “Se fiamos num bem, que a mente cria, / Que outro remédio há aí senão ser triste?”
Indulgente. 1. Pronto a perdoar; tolerante: “Somos excessivamente indulgentes para com as nossas franquezas e concedemo-nos, no amor, todas as liberdades.”
Mentido. Falso, ilusório, vão, enganoso, mentiroso: “O desejo, abismo onde agonizam traiçoeiras ambições, mentidas esperanças, negras asas diabólicas!”
Tremedal. 2. Degradação moral; torpeza: “os outros rebalsaram-se no tremedal das sensações brutais, e endeusaram o celebato, escoltado de escândalos, e o amor material com todas as suas impuridades.”
Mentir. 2. Errar no que diz ou conceitua: Os provérbios, em geral, não mentem.
Dizer. 7. Ensinar, preceituar: Os provérbios dizem, não raro, grandes verdades.
Colher. 22. Ter o que colher : Só colhe quem semeia.
Convelir. 1. Deslocar o que estava firme; subverter, abalar: Tais costumes podem convelir a estrutura social.
Velar3. 9. Interessar-se, preocupar-se, zelar: Velar pela manutenção da ordem.
Amoldar. 3. Ajustar, adaptar, harmonizar: Amoldou sua ideologia às conveniências da época.
Aconselhar. 5. Procurar convencer da necessidade ou conveniência de; procurar induzir, persuadir: Aconselhou-os a estudar.
Assentar. 13. Fundar, fundamentar, basear: Sua cultura assenta em boas leituras.
Valer. 2. Ter merecimento, valor ou aplicação: Na República de Platão os sábios eram os cidadãos que mais valiam.
Valer. 3. Ter proveito; ser proveitoso; aproveitar: O estudo muito vale.
Versado. Bom conhecedor; perito, prático, experimentado: “O aristocrata, muito versado em história natural, ensinou ao companheiro rudimentos de entomologia, geologia e botânica.”
Tratar. 20. Ter conhecimento; manter relações; conviver: Trata com a elite intelectual do país.
Convencer. 3. Adquirir certeza ; ficar persuadido; persuadir-se: “Cada vez me convenço mais do que assegura Anatole France: são as idéias que governam o mundo.”
Referências
BENHAMOU, S. Analyse dictionnairique de “feme” et de “home”. Cahiers de Lexicologie. Paris, 48 (1986 – 1).
BIDERMAN, M. T. O dicionário padrão da língua. Alfa. São Paulo: UNESP, 28 (supl.), 1984a.
____ . A ciência da lexicografia. Alfa. São Paulo: UNESP, 28 (supl.): 1-26, 1984b.
BOULANGER, J-C. Aspects de l’interdiction dans la lexicographie française contemporaine. Tübigen: Max Niemeyer Verlag, 1986.
DELESALLE, S; VALENSI, L. Le mot “nègre” dans les dictionnaires français d’Ancien Régime, historie et lexicographie. Langue Française. Paris, n. 15, 1972.
GREIMAS, A. J; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983.
HAUSMANN, J. F. Le lexicographe et la linguistique. Actes du XVIè. Colloque Int. de Linguistique Fonctionnelle. Paris, 29 juin-4 juillet 1989.
LEHMANN, A. Les représentations idéologiques dans le discours du dictionnaire. Lexiques. Coordonné par Amr Helmy Ibraim. Paris: Hachette, 1989.
MARTUSCELLI, S. M. A moral burguesa e o projeto de vida burguês no discurso do dicionário brasileiro. São Paulo 1996. 202 p. Tese (Doutorado em Letras – Semiótica e Linguística Geral). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.
MOK, Q. I. M. Dictionnaire et dérivation. Lexiques. Paris: Hachette, n. 2, 1983.
REY-DEBOVE, J. Etude linguistique et sémiotique des dictionnaires français contemporains. The Hague/Paris: Mouton, 1971.
____ . Léxico e dicionário. Alfa. São Paulo: UNESP, 28 (supl.): 45-69, 1984.
SCHMITZ, J. R. A rotulação de itens supostamente giriáticos em dicionários de língua portuguesa: um estudo comparativo. Cadernos da PUC. São Paulo: PUC-SP.
WEINREICH, U. Definição lexicográfica em semântica descritiva. Alfa. São Paulo: UNESP, 28 (supl.): 103-18, 1984.
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[1] Universidade de Taubaté , Instituto Básico de Humanidades. Endereço de correspondência: Rua Visconde do Rio Branco nº 22, Centro, CEP 12020-040, Taubaté, SP, Brasil. Endereço eletrônico: sonia-mariza@hotmail.com
[2] Segundo Greimas e Courtés (1983, p. 96), a partir do “sujeito da enunciação, implícito, mas produtor do enunciado, pode-se, pois, projetar (no momento do ato da linguagem ou do seu simulacro no interior do discurso), instalando-os no discurso, quer actantes da enunciação, quer actantes do enunciado. No primeiro caso, opera-se uma debreagem enunciativa, no segundo, uma debreagem enunciva. Conforme o tipo de debreagem utilizado distinguir-se-ão duas formas discursivas, ou mesmo dois grandes tipos de unidades discursivas: no primeiro caso, tratar-se-á das formas da enunciação enunciada (ou relatada): é o caso das narrativas em ‘eu’, mas também das sequências dialogadas; no segundo, das formas do enunciado enunciado (ou objetivado): é o que ocorre nas narrações que têm sujeitos quaisquer, nos discursos chamados objetivos, etc.”
[3] Este estudo recupera parte de nossa tese de doutorado (MARTUSCELLI, 1996), à qual remetemos para uma visão aprofundada dessas discriminações.
[4] Aliás, o próprio dicionário registra e traduz Vox populi, vox Dei assim: “A concordância das opiniões do público é bastante para estabelecer a verdade dum fato.”
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