domingo, 6 de abril de 2014

Qual o espaço para o exercício da cidadania e da socialização?

Qual o espaço para o exercício da cidadania e da socialização? - Houve um tempo, neste país, em que se podia observar, nas ruas, as cenas da tela do artista plástico Ivan Cruz, a qual escolhemos para ilustrar este post. Em sua obra, Cruz dá corpo às memórias de brincadeiras de sua infância, na cidade do Rio de Janeiro. Enquanto Cruz pensa as diversas formas do brincar no passado, o urbanista Roberto Gonçalves da Silva, coetâneo de Cruz, e tendo vivido sua infância no meio urbano da cidade paulista de Ribeirão Preto, preocupa-se com a dimensão espacial e com as implicações que isto tem para a iniciação política (cidadã) e a formação sociopsicológica de seres humanos.

As reflexões de Roberto Gonçalves da Silva, a seguir transcritas, foram apresentadas por ele na mesa redonda "Qualidade de vida urbana: a contribuição da psicologia e das ciências afins", na XXI Reunião da Sociedade Brasileira de Psicologia, Ribeirão Preto (SP), em outubro de l991. Este urbanista é membro do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Roberto Gonçalves da Silva esclareceu-nos que a "(in)disciplina" que ele oferece é uma optativa aberta a todos os alunos da universidade e a todas as pessoas moradoras da região polarizada por Florianópolis que "queiram estudar juntas as relações Arquitetura e Sociedade (sem negligenciar a Natureza) presentes na sua paisagem material e simbólica, em encontros semanais que ocorrem nas segundas, pela manhã, na sala 06 do Departamento de Arquitetura e Urbanismo".

 Ivan CruzVárias brincadeiras II, A.S.T., 2006.  Site do artista.

As repercussões espaciais do medo


Na minha infância, atrás das grades viviam os condenados pela justiça. Nós, crianças, brincávamos livremente, disputando ruas, praças e terrenos baldios; preenchendo de vida os espaços da cidade com uma cotidiana e intensa vitalidade. O significado de domínio público era uma realidade para todos. "Se essa rua fosse minha..." não era uma hipótese. Era fato presente nas respostas prontas às tentativas de cerceamento ao seu livre uso: - A rua é pública! Ribeirão Preto, nos anos 50, oferecia uma boa qualidade de vida aos seus habitantes.

Na infância dos meus filhos, nos anos 70, em São Paulo, atrás das grades viviam amigos condenados sem processo, enquanto o "milagre brasileiro" aumentava o número de moradores na rua, restringindo a experiência pública desta geração. Suas brincadeiras desenvolviam-se nos espaços privados da casa, do playground do edifício, na casa dos amigos, quase sempre sob a vigilância dos adultos. Sua experiência nos espaços públicos restringia-se aos fins de semana, aos espaços de consumo e lazer, sempre tutelados por adultos. A escola constituía seu único território cotidiano, entulhado por normas e regulamentos.

Buscando resgatar a experiência de minha infância, e estimulado pelo movimento das experiências alternativas, tive a oportunidade de realizar um projeto de Educação pela Arte, num Barracão da periferia de São Paulo. Brincando, nos fins de semana, com crianças do bairro do Rio Pequeno, sem limite de idade, passamos involuntariamente a atraí-las mais do que o catecismo dominical, dando margem a uma denúncia: de que aliciávamos quadros para o "terrorismo". Isto pôs fim à iniciativa.

Considero que, desde os anos 80,  as escolas constituem o último território "público" à disposição das nossas crianças, atentando-se para o fato de que este se configura na essência da vida pública.

As situações anteriores ilustram o processo de mudança que vem ocorrendo nas cidades brasileiras, no que diz respeito aos seus ambientes construídos. Tal qual o molusco e sua concha, a permanente interação entre a vida dos homens e a natureza (sem dela excluir o legado construído pelas gerações anteriores), ao longo do tempo, os espaços, os homens e seus pensamentos diferenciam-se. 

Aos que se ocupam da qualidade de vida, é irresponsável estudá-la descontextualizada, ou melhor, desambientalizada. Neste sentido, mais do que uma noção abstrata, um índice quantificável, um sentimento subjetivo, qualidade de vida significa a humanização do homem enquanto espécie: sua condição de criar cultura.

Do meu ponto de vista, e por dever de ofício, aprendi a prestar atenção nos limites que perfazem a descontinuidade entre o público e o privado - as arquiteturas - e de compreendê-los nos seus significados socialmente instituídos. A vida nas nossas cidades vai mal. A dinâmica social, expressando-se através dos processos que os homens vão estabelecendo entre a vida pública e a vida privada, ao apartheidizá-los e reduzi-los à condição de consumidores da indústria cultural, tem trazido como consequências a morte da vida pública e a privatização dos espaços anteriormente por ela ocupados.

Com respeito à qualidade de vida, duas perspectivas se abrem à consideração: a que tem por base a vida privada, e a que toma por referência a vida pública e a dinâmica social. 

A primeira, por fundar-se na realização individual, limita-se a quantificações. Neste sentido, a realidade é constituída pela oposição entre os mortos de fome e os mortos de medo. E a melhoria da qualidade de vida significa a minimização do sentimento de medo. 

A que defendo, e que pretendo submeter à discussão, considera fundamental a recuperação dos processos de comunicação primários entre os homens, rompendo o monopólio exercido pela mídia que, através da amplificação do medo propiciado pela divulgação permanente da violência, isola-nos, aprisionando-nos. A visibilidade desta mudança é perceptível a qualquer olhar que constata a deterioração crescente da vida e sua desumanização.

Dada a complexidade que significa a recuperação da qualidade de vida urbana, tanto o equacionamento acadêmico tradicional quanto as soluções técnicas especializadas têm se mostrado inócuas. Muitos têm proposto o tratamento interdisciplinar para o enfrentamento de problemas abrangentes como este. Entretanto, para evitar ambiguidades, julgo necessário precisar que não se trata de uma nova disciplina, e sim um esforço de síntese baseado na cooperação e solidariedade de pessoas que aprenderam a ver o mundo de diferentes pontos de vista fundados no desenvolvimento de seus conhecimentos parciais, sem excluir os demais atores do drama urbano.

Assim estaríamos recuperando a roda e com ela o sonho de "se esta rua voltasse a ser nossa..."

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