Tendo em vista a grave ameaça que sofrem os povos indígenas do Xingu, com a possível e iminente construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte - que já foi objeto de repúdio pela OEA, através de pressão exercida pela comunidade brasileira e internacional, e do empenho do Ministério Público do Pará -, decidimos republicar aqui texto originalmente publicado no jornal Sampa News, em 1991, o qual, a nosso ver, apesar de antigo, tem bastante pertinência em face dessa questão, que afinal de contas, foi levantada em 1975, durante a vigência do regime militar no país:
Em seu artigo Amazônia Brasileira - Preâmbulo a uma discussão antropológica da questão indígena (fotocópia de Revista da USP sem dados de referência), a antropóloga Renate B. Viertler lembra-nos de que os índios do Brasil não interessam à historiografia oficial do país. O que se procura difundir é a falsa ideia de que os remanescentes das populações indígenas do Brasil estejam assimilados, compondo o grande quadro geral da “cultura brasileira”. Viertler, no entanto, adverte-nos sobre a inveracidade desse tipo de discurso. A prática, a pesquisa de campo, revela que os grupos indígenas do Brasil resistem, preservando suas identidades étnicas através de uma grande variedade de processos sócio-culturais próprios.
O fato é que essas falácias prestam-se para ocultar a ideologia imperialista dos “civilizados” e negar a existência de agudos conflitos entre “civilizados” e indígenas, no passado e no presente.
No que diz respeito aos livros didáticos adotados nas escolas de ensino público de todo o país - e também nas instituições particulares -, o indígena é tratado como elemento genérico, omitindo-se as diversidades culturais existentes entre os diferentes grupos tribais.
O caráter preponderante das publicações infantis de temática indígena é o da adaptação de mitos. Segundo a Antropóloga, esse tipo de literatura infantil brasileira é sobretudo difundido nas bibliotecas das escolas públicas, chegando a constituir leitura prescrita para alunos das primeiras séries do ensino.
Viertler acredita que a preferência pelos mitos, em detrimento da realidade, é indicativa do propósito de alhear a criança brasileira quanto às questões indígenas concretas: “se mito não é história, pois, no caso do índio, esta última se inscreve não só em tradições orais, mas também em práticas sociais (tecnologia, cerimonialismo, etc.), associar o índio ao mito é associá-lo a uma não verdade histórica para a criança não indígena.”
Perante a legislação brasileira, os índios não gozam de plena cidadania, necessitando de tutela do Estado - através de membros da Funai e de certas ordens religiosas autorizadas - para exercerem seus direitos. O parágrafo único, do artigo 6º do Código Civil Brasileiro estabelece, em conformidade com a Constituição Federal, que “os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do país”. Isso equivale a dizer que o índio é considerado capaz somente quando deixa de ser índio.
Enquanto índio, cumpre-lhe pagar a renda indígena - pelos “benefícios” que recebe do governo - e esperar, pacientemente, que seus tutores zelem pelo seu interesse, no entanto:
a FUNAI tende a se omitir nos assuntos que interessam ao índio, seja por ordem de instâncias oficiais superiores, tal como o Conselho de Segurança Nacional, seja por pressões bem organizadas de latifundiários e grandes empresários. (Viertler)
Em suma: índio assimilado, índio genérico, índio bobo, índio preguiçoso, índio incapaz. Eis as imagens dos índios do Brasil. Por traz dessas imagens distorcidas, uma ideologia autoritária que propugna pela superioridade da cultura “civilizada”. Uma imagem pérfida que serve prestimosamente aos interesses do governo brasileiro e de grandes empresas nacionais e transnacionais ligadas à agropecuária, à mineração e à especulação de terras.
Segundo Viertler, a expansão das frentes pioneiras brasileiras levou os grupos indígenas a uma forma de resistência cultural caracterizada pelo “enquistamento” ou “fechamento”. Antes dessa reação ao contato interétnico, presume-se que as atividades originais dos indígenas, como incursões guerreiras, caça e coleta,implicassem maior número de flutuações populacionais, migrações sazonais e deslocamentos espontâneos.
Depois, os grupos tribais foram forçados a desenvolver novas formas de ocupação do espaço e a assumir ritmos de trabalho diversos. Os grupos que conseguiram sobreviver nessa nova superestrutura enfrentaram profundos e rápidos processos de transformação, preservando, contudo, certas atividades, geralmente de caráter ritual - chegando, por vezes, à exacerbação de padrões cerimoniais tradicionais - que garantiriam a persistência desses grupos na atualidade.
Viertler explica que essas tradições culturais, em especial, as de cunho cerimonial, correspondem a modos de produção distintos do modo de produção capitalista dos “civilizados”. Contudo, os administradores “civilizados” ignoram a complexidade e a natureza dessas atividades indígenas, inviabilizando a manutenção da dinâmica de abastecimento tradicional, seja pela imposição de novos padrões de trabalho, seja pela permissão do avanço de frentes de expansão e pioneiras, através da construção de ferrovias e rodovias, de grandes hidrelétricas, e da implantação de grandes projetos agropecuários e de empresas mineradoras nacionais e multinacionais - movidos, inclusive, por incentivos fiscais.
No que se refere às mineradoras, o jurista Dalmo Dallari acredita que “as riquezas do subsolo brasileiro interessam principalmente a empresas estrangeiras, favorecidas pelo complexo militar-tecnocrático, que decide os destinos do país, contando com a anuência da própria FUNAI”.
Viertler observa, a respeito, que tal atitude do governo fere a Constituição Federal e o Estatuto do Índio, os quais garantem-lhe a posse permanente das terras que este ocupa, bem como o usufruto exclusivo de todas as riquezas nelas existentes. A Antropóloga conta-nos que os grandes projetos de mineração são juridicamente regularizados pela Companhia Vale do Rio Doce Navegação, contando, sempre, com a acolhida favorável e rápida da Funai.
Infelizmente, o governo brasileiro não leva em consideração o significado que a perda de terras tem para os indígenas. Dá à questão das terras indígenas o mesmo tratamento que dispensa aos posseiros (camponeses): expulsa-os sistematicamente das terras que ocupam, em nome de interesses econômicos e geopolíticos. E os efeitos mais deletérios dessa ação atingem os índios.
Enquanto, para o camponês, a perda de terras significa a perda de condições de trabalho - a qual pode ser recuperada em outro lugar, apesar dos sofrimentos -, para o índio, a perda de suas terras implica a perda de si mesmo:
o índio, quando desalojado e removido de suas terras, considera-se desvinculado de sua própria condição de existência física e espiritual, um perdedor de si mesmo, indissoluvelmente ligado às terras. Nelas, dormem os ossos dos seus ancestrais os quais regeneram os recursos que alimentam, embelezam e dignificam a convivência dos vivos.
O camponês está integrado aos padrões culturais, sociais e tecnológicos do homem “civilizado”, podendo, assim, regenerar suas formas de sociabilidade em outra área rural brasileira. O índio está ligado “a uma tradição pré-colombiana muito específica, irredutível e imorredoura” que repudia os valores do mundo capitalista dos civilizados.
Links recomendados:
Documentos do Ministério Público Federal do Pará sobre a usina Belo Monte (pdf sob forma de slides)
Usina Hidrelétrica de Belo Monte, Wikipédia:
Vários textos, no Portal Ecodebate
A experiência do"outro" na antropologia, Renate B. Viertler:
Usina Hidrelétrica de Belo Monte, Wikipédia:
Vários textos, no Portal Ecodebate
A experiência do"outro" na antropologia, Renate B. Viertler:
Apresentação de slides sobre a questão da usina Belo Monte:
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