A esquerda e as forças progressistas devem lutar pela reforma política, via
assembleia constituinte exclusiva, com participação do movimento popular e sindical. Esta
é a opinião do cientista político Danilo E. Martuscelli, em seu artigo, a
seguir. O pesquisador marxista acredita que o momento é de tomar a pauta
proposta pelo governo Dilma Rousseff, com a politização e debate do tema da
reforma política, sob pena de transformar-se o plebiscito numa enquete
despolitizada e a reforma política numa farsa.
Politizar o debate sobre a reforma política e lutar pela
realização da assembleia constituinte exclusiva
Danilo Enrico
Martuscelli
Os protestos recentes que tomaram
as ruas de várias cidades do país, podem ser caracterizados como uma combinação
de espontaneísmo com movimento organizado. O espontaneísmo tem se manifestado
por meio de pautas difusas que questionam a malversação das verbas públicas, a
corrupção no sistema político, a legitimidade dos partidos políticos, entre
outros pontos. Trata-se de pautas com conteúdo progressista, mas facilmente
apropriadas pelas forças conservadoras, justamente por se fixarem no plano das
denúncias, sem apresentarem medidas concretas para solucionar as mazelas
apontadas. Já o movimento organizado tem se valido da reivindicação de pautas
concretas, frutos, na maioria das vezes, da experiência de lutas travadas por
diversos grupos políticos e movimentos sociais ao longo das últimas décadas.
Queremos ressaltar, com isso, que as lutas pelo passe livre, por mais verbas
para a educação e para a saúde, pela tributação das grandes fortunas, pela
redução da jornada de trabalho, pela democratização da mídia, não surgiram em
junho de 2013, mas são resultantes de muitos debates e embates realizados nas
ruas e nos mais variados espaços sociais. São exatamente as pautas concretas,
construídas nas lutas que têm sido até agora vitoriosas, o que nos leva a
salientar a importância da mobilização e da organização na luta por direitos e
pela ampliação de conquistas democráticas.
Quem tem acompanhado o noticiário
deve ter percebido a dificuldade que os diferentes governos e prefeituras têm
tido para compreender e lidar com os protestos. Entre a indisposição para a
negociação e a tática de neutralizar os protestos, com
a inserção de pautas secundárias presentes nas manifestações de maneira difusa,
governos e prefeituras, com o apoio da mídia, têm tomado clara
orientação, nos últimos dias, no sentido da neutralização dos movimentos. É
preciso ressaltar que, desde a crise política de 2005, a bandeira da reforma
política tem sido defendida com unhas e dentes pela burguesia brasileira para
se livrar de eventuais “conturbações” das massas. Ao contrário do que pregava a
esquerda e a centro-esquerda, não vivíamos a iminência de um golpe das elites,
pois a maior parte destas vinha defendendo a reforma política – e não, o impeachment de Lula. Basta ler o
documento “Agenda mínima para a governabilidade”, entregue ao governo Lula por
seis entidades empresariais (CNI, CNA, CNT, CNC, CNF e Ação empresarial), em
agosto de 2005, e as declarações dos presidentes da Fiesp e da Febraban, na
mídia, para chegarmos à conclusão de que a burguesia brasileira não queria
conviver novamente com o movimento de massas que tomou as ruas de todo o Brasil
em 1992 para pedir a cabeça de Collor de Mello -
hoje, aliado dos governos Lula e Dilma. A defesa da reforma política é
retomada, agora, não só como uma forma de neutralizar as manifestações de massa
que vêm questionando as cláusulas pétreas da rolagem da dívida pública e da
isenção fiscal, e concessão de serviços e atividades públicos ao capital
privado, mas também como um meio de superar a instabilidade política que
atingiu o país. Além disso, é uma pauta
que pega de surpresa o movimento organizado, não havendo sequer acúmulo
suficiente por parte deste para debatê-la. Alguns poderiam dizer que a inserção
do tema na pauta dos debates nacionais, ajudaria a fomentar o conhecimento da
matéria. No entanto, é preciso reconhecer que o que se pode ou não fazer com
uma reforma política, o significado de uma assembleia constituinte exclusiva e
as diferenças existentes entre plebiscito e referendo se apresentam como questões
bem distantes da compreensão do grande público e de parte considerável da
intelectualidade e das forças e movimentos progressistas organizados. Se
desejasse realizar mudanças substanciais e progressistas com a reforma
política, o governo Dilma teria que primeiramente ouvir e negociar a matéria
com tais forças e movimentos, de modo a amadurecer a proposta e permitir que esta
ganhasse capilaridade. Nada disso fez, preferiu o voluntarismo, tornando-se
presa fácil da oposição de direita, dos partidos de aluguel aliados e das
forças conservadoras que compõem o seu governo.
Para fazer o jogo de que faz um
governo progressista, a presidente Dilma sugeriu a ideia de que a reforma
política poderia ser debatida por meio da organização de um plebiscito que
aprovaria uma assembleia constituinte exclusiva sobre o tema. No entanto, em
menos de 24 horas depois de ir à rede nacional lançar a proposta, a presidente
Dilma, sob pressão da própria base e da oposição, procurou abortar a ideia
inicial da assembleia constituinte exclusiva. Se acreditássemos no que diz
o governo, a oposição de direita e a imprensa, seríamos levados a concluir que
a medida era inconstitucional e por isso não poderia ser levada adiante. Do
ponto de vista jurídico, não há consenso sobre a matéria, já que alguns
especialistas da área do direito têm defendido a constitucionalidade da
proposta. No entendimento desses especialistas, para autorizar a realização de
um plebiscito visando aprovar ou não a assembleia constituinte exclusiva, a
presidente da República precisaria encaminhar uma proposta de emenda
constitucional ao Congresso Nacional, que, por sua vez, teria que aprová-la por
maioria qualificada. Do ponto de vista político, diferentemente do método
adotado pela assembleia constituinte de "congressistas" de 1987-1988,
a realização de uma assembleia constituinte exclusiva, com representantes
externos ao Congresso Nacional, poderia abrir precedentes para uma maior
politização do debate acerca da reforma política, algo muito inconveniente para
o governo, a oposição de direita e a imprensa. Obviamente, o problema não seria
jurídico, mas político!
A recente divulgação dos cinco
temas propostos pela presidência da República ao Senado indica claramente a
natureza despolitizada do debate em curso sobre a reforma política. Os cinco temas sugeridos são os seguintes: 1) financiamento de campanha; 2) sistema eleitoral; 3)
suplência do senador; 4) fim do voto secreto em deliberações do Congresso
Nacional; 5) fim das coligações partidárias proporcionais. Com exceção
da questão do fim do voto secreto nas decisões do Congresso, todos os demais
seguem a lógica da reforma política sem reformas. O ponto do financiamento de
campanha é importante, mas o fundamental é saber como se daria a distribuição
do financiamento público, caso seja aprovado o financiamento público exclusivo.
Já o tema do sistema eleitoral foi inserido no plebiscito para gerar confusão,
pois a votação pode seguir várias diretrizes: voto majoritário, voto
proporcional com lista fechada, voto proporcional com lista flexível, voto
distrital, voto distrital misto. Aqui o propósito do plebiscito parece se
confundir com uma prova objetiva de ciência política, de marcar “X”. A questão
da suplência do senador chega a ser risível e está muito distante de ser uma
preocupação nacional para ser votada num plebiscito. Imaginem-se as manchetes
de jornal informando que o Brasil realiza plebiscito para aprovar a permanência
ou não da suplência do senador... Por fim, é curioso constatar a inserção da
votação sobre a continuidade ou não das coligações partidárias nas eleições
proporcionais. Isso não faz o menor sentido se colocado no mesmo regime de
votação do sistema eleitoral, pois, caso vencesse a proposta do voto distrital - tão desejada pela oposição de direita - a votação das coligações nas eleições
proporcionais não teria nenhum efeito.
Pelo exposto, torna-se
urgente ampliar os espaços de debate sobre a reforma política. Se, num
primeiro momento, estava correta a crítica à manobra do governo de dar
centralidade à pauta da reforma política, consideramos que, agora, chegou o
momento de mudar de posição. A despeito da queda da popularidade da presidente
Dilma, devemos reconhecer que ela conseguiu transformar a pauta da reforma
política numa pauta central. Assim sendo, entendemos que cabe à esquerda e às
forças progressistas enfrentar o debate e politizá-lo. É com essa preocupação
que indicamos abaixo um conjunto de ideias e medidas que devem ser minimamente
debatidas e consideradas, caso não queiramos transformar a reforma política
numa enquete despolitizada que não aponte para mudanças substanciais, mantendo
tudo como está.
Para ser didático e correndo o
risco de ser superficial, apontamos questões que deveriam ser trabalhadas por
uma reforma política ampliada, portanto, não meramente restrita ao âmbito
partidário e eleitoral:
1) Criação de mecanismos de controle popular
a) Criação de mecanismos para a
realização de amplos debates, na sociedade, sobre a reforma política, promovendo-se
a reforma por meio de assembleia constituinte exclusiva, desde que garantida a
participação de representantes dos movimentos popular e sindical.
b) Instituição do mandato
revogatório. Após metade do mandato, desde que preenchido o requisito mínimo de
20% de assinaturas do total de eleitores, seria concedida à iniciativa popular
a prerrogativa de realizar referendo para aprovar ou não a continuidade do
ocupante do cargo executivo. Tal dispositivo existe na Constituição de outros
países, como é o caso da Venezuela.
c) Extensão da prerrogativa de
convocar plebiscitos e referendos sobre temas de relevância nacional à iniciativa
popular, desde que preenchido o requisito mínimo de 20% assinaturas do total de
eleitores.
2) Poder econômico e política
A reforma política não resolverá
o problema da influência do poder econômico sobre o processo eleitoral, pois as
desigualdades socioeconômicas existentes nas sociedades capitalistas não
colocam todos os indivíduos em condições de igualdade de participação política,
seja como candidato, seja como eleitor, nos processos eleitorais. Nesse
sentido, faz-se necessário construir, para além de uma defesa genérica do
financiamento público exclusivo de campanha, uma pauta que detalhe como se dará
a distribuição desse financiamento e que estabeleça mecanismos para dificultar
ou constranger a influência do poder econômico nos pleitos eleitorais.
No âmbito da reforma política, as seguintes medidas poderiam ser
adotadas:
a) Aprovação do financiamento
público exclusivo de campanha. Medida a ser adotada não só para reduzir os
custos de campanha, mas também para ampliar as condições de concorrência dos
partidos que não recebem os volumosos recursos de empreiteiros, banqueiros e
outros financiadores privados, como os principais partidos: PT, PSDB, PMDB,
PSD, etc.
b) Destinação do montante total
do fundo partidário ao financiamento público exclusivo de campanha: 50% do
orçamento deveria ser destinado a todos os partidos de maneira igualitária e
50% dos recursos restantes deveriam ser distribuídos proporcionalmente de
acordo com a representação de cada partido nas instâncias legislativas federal,
estadual e municipal. Isso garantiria recursos mínimos para cada partido
realizar sua própria campanha e romperia, em certo sentido, com as assimetrias
fomentadas pelo atual modelo;
c) Criação de dispositivos
punitivos mais incisivos para os partidos que fizerem uso do caixa dois em suas
campanhas eleitorais. Uma possibilidade é transformar o caixa dois num crime
inafiançável.
d) Proibição do pagamento de
cabos eleitorais, com previsão de multas com valores correspondentes até 50% do
financiamento público recebido pelo partido, no caso de desrespeito a esse
dispositivo.
e) Garantia de uso de tempo igual
no horário eleitoral para todos os candidatos aos cargos executivos.
f) Garantia de divisão
igualitária de 50% do tempo do horário eleitoral para os partidos que disputam
as vagas, nos legislativos, e de distribuição proporcional dos 50% do tempo
restante de acordo com a representação de cada partido nos legislativos
federal, estadual e municipal.
g) Garantir na TV e no rádio,
durante o período eleitoral, o mesmo tempo de cobertura da campanha dos
candidatos aos cargos executivos, seja na publicização das matérias, seja na
realização dos debates entre tais candidatos.
Além disso, seria de suma
importância que a reforma política viesse acompanha da regulamentação da
taxação sobre grandes fortunas e da aprovação do imposto progressivo com vistas
a promover efeitos redistributivos de amplo alcance e tornar o processo
eleitoral menos vulnerável à influência do poder econômico.
3) Combate ao carreirismo
a) Indexação do salário de
parlamentares e ocupantes de cargos executivos ao salário mínimo e
estabelecimento de um teto de 10 salários mínimos.
b) Permissão de uma única
reeleição e de, no máximo, três mandatos não consecutivos para os ocupantes de
cargos parlamentares e executivos.
c) Matrícula obrigatória aos
parlamentares e ocupantes de cargos executivos de seus filhos em escola
pública.
4) Voto
a) Manutenção do voto obrigatório.
b) Validação os votos nulos e
brancos, tendo em vista sua importância para identificar o voto de protesto. Caso
a soma dos votos nulos e brancos seja superior ao percentual atingido pelo
primeiro colocado, convocação de novas eleições.
5) Fidelidade partidária e fortalecimento dos partidos
a) Adoção, para as eleições de
cargos legislativos, da lista pré-ordenada de candidatos por partido,
observando-se critérios de gênero (50% de mulheres e 50% de homens). Tal
dispositivo poderá contribuir para neutralizar a força do personalismo político
e para transferir a posse do mandato para o partido do candidato. O parlamentar
que desejar mudar ou sair do partido de origem perderá o mandato, e o próximo
colocado da lista do partido passará a ocupar o seu lugar.
b) Criação de dispositivo para
calcular anualmente a taxa de infidelidade partidária nas votações, prevendo-se
a perda automática do mandato do parlamentar que contrariar em mais de 20% as
decisões da bancada do partido ou, quando for o caso, as decisões do Diretório
Nacional do seu partido.
Em resumo: para pensar numa
reforma política ampliada e efetivamente participativa, cabe aos setores de
esquerda e progressistas defenderem a realização de uma assembleia constituinte
exclusiva, caso contrário, corre-se o risco de transformar o plebiscito numa
enquete despolitizada e a reforma política numa farsa. Certamente, as mudanças
mais substanciais, ainda que nos limites da democracia burguesa, não ocorrerão
sem mobilização e movimento organizado nas ruas. Fica aqui também registrada a
pergunta: qual partido da ordem abraçaria o conjunto de medidas acima proposto?
Danilo Enrico Martuscelli é mestre e
doutorando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), docente da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), pesquisador
do Centro de Estudos Marxistas da Unicamp (Cemarx), membro do Conselho
Editorial das revistas Lutas & resistências (UEL/PR), Crítica Marxista (São
Paulo/SP) e Cadernos Cemarx (Unicamp/SP).
ResponderExcluirDanilo, o seu texto expõe com lucidez algumas questões, que, a meu ver, a esquerda tomada pelo sectarismo não dá brechas para o debate. A meu ver a colocação de uma assembléia Constituinte exclusiva para a reforma política proposta pelo governo, dá mostras da dificuldade do poder central em realizar qualquer reforma de peso, visto os interesses do difuso universo palaciano de aliados, do congresso nacional ( reacionário às mudanças), entre outras resistências institucionais. Talvez demitificar o Poder, como o tentou Luiza Erundina na experiência na gestão da prefeitura de São Paulo, igualmente mal compreendida. Não desconfio das intenções de Dilma ( seja pelo seu histórico de lutas, como pelas opções que vêm tomando, dentro das limitações impostas). Difícil, todavia, é tornar esta questão, pelas razões que você bem coloca, como pano de fundo para as discussões e profícuas e necessárias reflexões. A explosão das ruas, sem comando aparente, é salutar, talvez ajudar esse impulso a direcioná-lo para a reforma seja o melhor momento, fora disso, o marasmo e os interesses corporativos impedirão qualquer avanço significativo.
Saudações de que o conheceu menino e se orgulha, hoje, de seu raciocínio lúcido e inteligente.
Ediloy A.C.Ferraro