quarta-feira, 30 de maio de 2012

Marcha das vadias para calar o dicionário


Em pleno século XXI, é preciso que a mulher saia às ruas para protestar contra o machismo que a vitima, diariamente, seja de forma extremamente violenta, como nos casos de espancamento e de estupro, seja de forma insidiosa, através do assédio sexual e do bullying a que está exposta, sobretudo nas sociedades patriarcais, como é o caso da sociedade brasileira.

Enormes foram os avanços tecnológicos da humanidade, e as mulheres, na maioria das nações obtiveram conquistas importantes, contudo a dominação masculina ainda é a regra, e isso se dá, principalmente, pelo controle do corpo da mulher por parte do homem e da sociedade (na qual estão introjetados os valores machistas). Daí a necessidade das marchas, marchas das vadias, para gritar aos machistas que o corpo da mulher a ela lhe pertence, podendo ela vesti-se ou despir-se como bem lhe aprouver, sem que esteja sinalizando para que haja qualquer investida de machos, sem seu consentimento.

A propósito desse exercício de dominação do corpo da mulher, escrevemos o texto a seguir, em 1992, tendo publicado no jornal Hebdomadário Cacimba, São Paulo. Trata-se de análise do discurso do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda (edição de 1975), com base na pesquisa dos verbetes das letras G e V. Como se pode constatar neste breve estudo, a ideologia machista é bastante evidente nesse instrumento do ensino institucionalizado, ressaltando-se a ótica da dominação da mulher enquanto corpo-objeto.

Aurelião Machão

"Nul n’echappe à l’ideologie, ni le dictionnaire, ni le lecteur, ni le critique. " Alise M. Lehmann

Quem vence a mulher vence a vida? O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda faz desta questão uma afirmação, em citação referente à primeira acepção do verbete vencer.

Para o Aurelião, a mulher não passa de um corpo, um corpo bonito e gostoso, a ser manipulado e subjugado pelo homem. Ora “é uma mulata grau-dez”; ora é a vaca leiteira, uma “mulher de seios grandes”; ora é a “mulher cujo corpo, pela cintura fina, ancas largas e formas arredondadas, lembra o feitio do violão”; ora é a virgem, a “mulher (especialmente mulher jovem) que nunca teve relações sexuais com homem”; ora é a vênus, “mulher formosíssima”; ora é uma viragorepugnante”, “de olhos zanagas e maus”; ora é a menina de “talhe grácil” que “arfa com a ondulação da marcha”; ora é “aquela que exibe no corpo as linhas venustas, que seduzem os homens”; ora “é uma pequena de ver, cheirar e guardar”; ora é aquela a ser devorada , “num abraço de todo o corpo, ganindo ligeiros gritos secos, curtos, muito agudos”; ora é “deliciosa, com seu corpinho nervoso e ondeado, os seus grandes olhos garços”; ora é huri, “muito gozada e eternamente virgem”; ora é uma cabocla cujas pernas vão ser “greladas” por “compridos bugalhos”.

Todas meros corpos, corpos que dão calos nas mãos dos homens, “calos que lhes vinham de tanto acariciar corpos femininos”.

Mulher inteligente, no dicionário? Nem pensar. Somente homens possuem esse precioso dom. Dos verbetes relacionados nas letras G e V, em 56 menções a escritores, nas descrições lexicográficas, não consta sequer uma mulher. Nos personais da letra G, há apenas uma mulher: Isabela Gaforini, “Cantora italiana que se exibiu em Portugal no século XIX, e cujos penteados ganharam fama”, motivando a criação do termo “gaforina” (cabelo em desalinho).

Nossa descabelada está numa lista que arrola 27 homens históricos: físicos, químicos, médicos, políticos, economistas, cientistas, botânicos, linguistas, reis e papas. Será por que não existiam mulheres ilustres com sobrenome iniciado em G? Não. Simplesmente, na letra G, gê de gênio, geniais são apenas homens: “Dante é um poeta de gênio” (acepção 3); “Einstein é um gênio” e “Beethoven é um gênio da música” (acepção 5). A única coisa que a mulher tem de gênio é o gênio ruim: “Impossível viver com ela: tem um gênio difícil.” (acepção 6).

Daí, porque a mulher, no Aurelião, só exerce funções de nenhum ou de pouco prestígio social: a criada, a operária, a violeteira, a vedete, a cantora, a bailarina, a atriz, a secretária. Se é artista, não tem a fama que o homem tem; é obscura, sem adjetivos, ou é a “atriz que faz o papel de mulher fatal”. A mulher fatal que seduz a pobre vítima masculina - “muitas mulheres vergam os maridos a seus caprichos” - , a mulher a quem é preciso vencer para vencer a vida, fazendo-a ser a esposa e a mãe dedicada, ou a puta execrada, a “grulhada” calada , o corpo-objeto dominado.

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