Em pleno
século XXI, é preciso que a mulher saia às ruas para protestar contra o
machismo que a vitima, diariamente, seja de forma extremamente violenta, como
nos casos de espancamento e de estupro, seja de forma insidiosa, através do
assédio sexual e do bullying a que
está exposta, sobretudo nas sociedades patriarcais, como é o caso da sociedade
brasileira.
Enormes foram
os avanços tecnológicos da humanidade, e as mulheres, na maioria das nações
obtiveram conquistas importantes, contudo a dominação masculina ainda é a
regra, e isso se dá, principalmente, pelo controle do corpo da mulher por parte
do homem e da sociedade (na qual estão introjetados os valores machistas). Daí
a necessidade das marchas, marchas das
vadias, para gritar aos machistas que o corpo da mulher a ela lhe pertence,
podendo ela vesti-se ou despir-se como bem lhe aprouver, sem que esteja
sinalizando para que haja qualquer investida de machos, sem seu consentimento.
A propósito
desse exercício de dominação do corpo da mulher, escrevemos o texto a seguir,
em 1992, tendo publicado no jornal Hebdomadário Cacimba, São Paulo.
Trata-se de análise do discurso do Novo Dicionário da Língua Portuguesa,
de Aurélio Buarque de Holanda (edição de 1975), com base na pesquisa dos
verbetes das letras G e V. Como se pode constatar neste breve
estudo, a ideologia machista é bastante evidente nesse instrumento do ensino
institucionalizado, ressaltando-se a ótica da dominação da mulher enquanto
corpo-objeto.
Aurelião Machão
"Nul n’echappe à l’ideologie, ni le
dictionnaire, ni le lecteur, ni le critique. " Alise M. Lehmann
Quem vence a
mulher vence a vida? O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda faz desta
questão uma afirmação, em citação referente à primeira acepção do verbete vencer.
Para o Aurelião,
a mulher não passa de um corpo, um corpo bonito e gostoso, a ser manipulado e
subjugado pelo homem. Ora “é uma mulata
grau-dez”; ora é a vaca leiteira,
uma “mulher de seios grandes”; ora é
a “mulher cujo corpo, pela cintura fina,
ancas largas e formas arredondadas, lembra o feitio do violão”; ora é a virgem, a “mulher (especialmente mulher jovem) que nunca teve relações sexuais com
homem”; ora é a vênus, “mulher formosíssima”; ora é uma virago “repugnante”, “de olhos
zanagas e maus”; ora é a menina de “talhe grácil” que “arfa com a
ondulação da marcha”; ora é “aquela
que exibe no corpo as linhas venustas, que seduzem os homens”; ora “é uma pequena de ver, cheirar e guardar”;
ora é aquela a ser devorada , “num abraço
de todo o corpo, ganindo ligeiros gritos secos, curtos, muito agudos”; ora
é “deliciosa, com seu corpinho nervoso e
ondeado, os seus grandes olhos garços”; ora é huri, “muito gozada e
eternamente virgem”; ora é uma cabocla
cujas pernas vão ser “greladas” por “compridos bugalhos”.
Todas meros
corpos, corpos que dão calos nas mãos dos homens, “calos que lhes vinham de tanto acariciar corpos femininos”.
Mulher
inteligente, no dicionário? Nem pensar. Somente homens possuem esse precioso
dom. Dos verbetes relacionados nas letras G
e V, em 56 menções a escritores, nas
descrições lexicográficas, não consta sequer uma mulher. Nos personais da letra
G, há apenas uma mulher: Isabela Gaforini, “Cantora italiana que se exibiu em Portugal no século XIX, e cujos
penteados ganharam fama”, motivando a criação do termo “gaforina” (cabelo em desalinho).
Nossa
descabelada está numa lista que arrola 27 homens históricos: físicos, químicos,
médicos, políticos, economistas, cientistas, botânicos, linguistas, reis e
papas. Será por que não existiam mulheres ilustres com sobrenome iniciado em G? Não. Simplesmente, na letra G, gê de gênio, geniais são apenas
homens: “Dante é um poeta de gênio”
(acepção 3); “Einstein é um gênio” e “Beethoven é um gênio da música” (acepção
5). A única coisa que a mulher tem de gênio é o gênio ruim: “Impossível viver com ela: tem um gênio
difícil.” (acepção 6).
Daí, porque a
mulher, no Aurelião, só exerce funções de nenhum ou de pouco prestígio
social: a criada, a operária, a violeteira, a vedete, a cantora, a bailarina, a
atriz, a secretária. Se é artista, não tem a fama que o homem tem; é obscura,
sem adjetivos, ou é a “atriz que faz o papel de mulher fatal”. A mulher fatal
que seduz a pobre vítima masculina - “muitas mulheres vergam os maridos a seus
caprichos” - , a mulher a quem é preciso vencer para vencer a vida, fazendo-a
ser a esposa e a mãe dedicada, ou a puta execrada, a “grulhada” calada , o
corpo-objeto dominado.
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