O professor Roberto Leher, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), faz uma análise do comportamento do Governo Federal frente à greve dos
docentes das instituições federais de ensino superior (IFES) - que se estende
há dez dias -, procurando demonstrar que o Governo almeja impor ao país um
modelo de universidade atrelada a interesses privados, que ele chama de “universidade
de serviços”: “universidade como organização de suporte a
empresas, em detrimento de sua função pública de produção e socialização de
conhecimento voltado para os problemas lógicos e epistemológicos do
conhecimento e para os problemas atuais e futuros dos povos.” Neste contexto pretendido pelo Governo, o
professor teria seu papel social também alterado, passando à categoria de
empreendedores.
Acompanhe a
argumentação de Leher (os grifos são nossos).
O governo
Dilma, a greve nacional dos docentes e a universidade de serviços
por Roberto Leher (UFRJ)
A longa
sequencia de gestos protelatórios que levaram os docentes das IFES a uma de
suas maiores greves, alcançando 48 universidades em todo país (28/05), acaba de ganhar mais um episódio: o governo da
presidenta Dilma cancelou a reunião do Grupo de Trabalho (espaço supostamente
de negociação da carreira) do dia 28 de maio que, afinal, poderia abrir caminho
para a solução da greve nacional que já completa longos dez dias. Existem
algumas hipóteses para explicar tal medida irresponsavelmente postergatória:
(i) a
presidenta – assumindo o papel de xerife do ajuste fiscal – cancelou
a audiência pois, em virtude da crise, não pode negociar melhorias
salariais para os docentes das universidades, visto que a situação das contas
públicas não permite a reestruturação da carreira pretendida pelos professores;
(ii)
apostando na divisão da categoria, a presidenta faz jogral de negociação com
uma organização que, a rigor, é o seu espelho, concluindo que logo os
professores, presumivelmente desprovidos de capacidade de análise e de crítica,
vão se acomodar com o jogo de faz de conta, o que permitiria o governo Dilma
alcançar o seu propósito de deslocar um possível pequeno ajuste nas tabelas
para 2014, ano que os seus sábios assessores vindos do movimento sindical
oficialista sabem que provavelmente será de difícil mobilização reivindicatória
em virtude da Copa Mundial de Futebol, “momento de união apaixonada de todos os
brasileiros”, e
(iii)
sustentando um projeto de conversão das universidades públicas de instituições
autônomas frente ao Estado, aos governos e aos interesses particularistas
privados em organizações de serviços, a presidenta protela as negociações e
tenta enfraquecer o sindicato que organiza a greve nacional para viabilizar o
seu projeto de universidade e de carreira que ‘resignificam’ os professores como docentes-empreendedores,
refuncionalizando a função social da universidade como organização de suporte a
empresas, em detrimento de sua função pública de produção e socialização de
conhecimento voltado para os problemas lógicos e epistemológicos do
conhecimento e para os problemas atuais e futuros dos povos.
Em relação a primeira hipótese, a análise do orçamento 2012[1] evidencia
que o gasto com pessoal segue estabilizado em torno de 4,3% do PIB, frente a
uma receita de tributos federais
de 24% do PIB. Entretanto, os juros e o serviço da dívida seguem
consumindo o grosso dos tributos que continuam crescendo acima da
inflação. Com efeito, entre 2001 e 2010 os tributos cresceram 265%, frente a
uma inflação de 90% (IPCA). Conforme a LDO para o ano de 2012, a previsão de
crescimento da receita é de 13%, porém os gastos com pessoal, conforme a mesma
fonte, crescerá apenas 1,8% em valores nominais.
O corte de R$
55 bilhões em 2012 (mais de 22% das verbas do MCT) não é, obviamente, para
melhorar o Estado social, mas, antes, para seguir beneficiando os portadores de
títulos da dívida pública que receberam, somente em 2012, R$ 369,8 bilhões (até
11/05), correspondente a 56% do gasto federal[2].
Ademais, em
virtude da pressão de diversos setores que compõem o bloco de poder, o governo
Federal está ampliando as isenções fiscais, como recentemente para as
corporações da indústria automobilística, renúncias fiscais que comprovadamente
são a pior e mais opaca forma de gasto público e que ultrapassam R$ R$ 145
bilhões/ano. A despeito dessas opções em prol dos setores dominantes, algumas
carreiras tiveram modestas correções, como as do MCT e do IPEA.
Em suma, a hipótese não é verdadeira: não há crise fiscal. Os governos,
particularmente desde a renegociação da dívida do Plano Brady (1994), seguem
priorizando os bancos e as frações que estão no núcleo do bloco de poder (vide
financiamento a juros subsidiados do BNDES, isenções para as instituições de
ensino superior privadas-mercantis etc.). Contudo, os grandes números permitem
sustentar que a intransigência do governo em relação a carreira dos professores
das IFES não se deve a falta de recursos públicos para a reestruturação da
carreira. São as opções políticas do governo que impossibilitam a nova
carreira.
Segunda hipótese. De fato, seria muita ingenuidade ignorar que
as medidas protelatórias objetivam empurrar as negociações para o final do
semestre, impossibilitando os projetos de lei de reestruturação da carreira,
incluindo a nova malha salarial e a inclusão destes gastos públicos na LDO de
2013. O simulacro de negociações tem como atores principais o MEC, que se exime
de qualquer responsabilidade sobre as universidades e a carreira docente, o
MPOG que defende a conversão da carreira acadêmica em uma carreira para
empreendedores e, como coadjuvante, a própria organização pelega que faz o
papel dos truões, alimentando a farsa do jogral das negociações.
Terceira hipótese. É a que possui maior lastro
empírico. As duas hipóteses anteriores podem ser compreendidas de
modo mais refinado no escopo desta última hipótese. De fato, o modelo de
desenvolvimento em curso aprofunda a condição capitalista dependente do país,
promovendo a especialização regressiva da economia. Se, em termos de PIB, os resultados
são alvissareiros, a exemplo dos indicadores de concentração de renda que
alavancam um seleto grupo de investidores para a exclusiva lista dos 500 mais
ricos do mundo da Forbes, o mesmo não pode ser dito em relação a
educação pública.
Os salários
dos professores da educação básica são os mais baixos entre os
graduados[3] e, entre as carreiras do Executivo, a dos docentes é a de
menor remuneração. A ideia-força é de que os docentes crescentemente
pauperizados devem ser induzidos a prestar serviços, seja ao próprio governo,
operando suas políticas de alívio à pobreza, alternativa presente nas ciências
sociais e humanas ou, no caso das ciências ditas duras, a se enquadrarem no rol
das atividades de pesquisa e desenvolvimento (ditas de inovação), funções que a
literatura internacional comprova que não ocorrem (e não podem ser realizadas)
nas universidades[4].
A rigor, em
nome da inovação, as corporações querem que as universidades sejam prestadoras
de serviços diversos que elas próprias não estão dispostas a desenvolver, pois
envolveriam a criação de departamentos de pesquisa e desenvolvimento e a
contratação de pessoal qualificado.
O elenco de
medidas do Executivo que operacionaliza esse objetivo é impressionante: Lei de
Inovação Tecnológica, institucionalização das fundações privadas ditas de
apoio, abertura de editais pelas agencias de fomento do MCT para atividades
empreendedoras. Somente nos primeiros meses deste ano o Executivo viabilizou a
Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, um ente privado, que submete os
Hospitais Universitários aos princípios das empresas privadas e aos contratos
de gestão preconizados no plano de reforma do Estado (Lei nº. 12.550 , 15 de dezembro de 2012), a Funpresp
(Fundação de Previdência Complementar dos Servidores Públicos Federais), que
limita ao teto de R$ 3.916,20, medida que envolve enorme transferência de
ativos públicos para o setor rentista e que fragiliza, ainda mais, a carreira
dos novos docentes, pois, além de não terem aposentadoria integral, não
possuirão o FGTS, restando como última alternativa a opção pelo
empreendedorismo que ilusoriamente (ao menos para a grande maioria dos
docentes) poderia assegurar algum patrimônio para a aposentadoria.
Ademais,
frente à ruina da infraestrutura, os docentes devem captar recursos por editais
para prover o básico das condições de trabalho. Por isso, nada mais coerente do que a insistência do Executivo em uma
carreira que converte os professores em empreendedores que ganham por projetos,
frequentemente ao custo da ética na produção do conhecimento[5].
Os operadores
desse processo de reconversão da função social da universidade pública e da
natureza do trabalho e da carreira docentes parecem convencidos de que já
conquistaram os corações e as mentes dos professores e por isso apostam no
impasse nas negociações. O alastramento da greve nacional dos professores das
IFES, o vigoroso e emocionante apoio estudantil a essa luta sugerem que os
analistas políticos do governo Federal podem estar equivocados. A adesão
crescente dos professores e estudantes ao movimento comprova que existe um
forte apreço da comunidade acadêmica ao caráter público, autônomo e crítico da
universidade. E não menos relevante, de que a consciência política não está
obliterada pela tese do fim da história[6].
A exemplo de
outros países, os professores e os estudantes brasileiros demonstram coragem,
ousadia e determinação na luta em prol de uma universidade pública, democrática
e aberta aos desafios do tempo histórico!
Rio
de Janeiro, 27 de maio de 2012
Notas:
[1]http://www.senado.gov.br/noticias/agencia/infos/info_orcamento_para_2012/ORCAMENTO_PARA_2012.html
[2] http://www.auditoriacidada.org.br/
[3] http://oglobo.globo.com/educacao/professor-ainda-pior-salario-4954397
[4] Mansfield, Edwin 1998 Academic research and industrial innovation: An update of empirical findings em Research Policy 26, p. 773–776
[5] Charles Ferguson, A corrupção acadêmica e a crise financeira, disponível em: http://noticias.bol.uol.com.br/economia/2012/05/27/a-corrupcao-academica-e-a-crise-financeira.jhtm
[6] . Marcelo Badaró Mattos, Algo de novo no reino das Universidades Federais?
[2] http://www.auditoriacidada.org.br/
[3] http://oglobo.globo.com/educacao/professor-ainda-pior-salario-4954397
[4] Mansfield, Edwin 1998 Academic research and industrial innovation: An update of empirical findings em Research Policy 26, p. 773–776
[5] Charles Ferguson, A corrupção acadêmica e a crise financeira, disponível em: http://noticias.bol.uol.com.br/economia/2012/05/27/a-corrupcao-academica-e-a-crise-financeira.jhtm
[6] . Marcelo Badaró Mattos, Algo de novo no reino das Universidades Federais?
Fonte (sem as notas): Jornal
Dia a Dia
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