domingo, 21 de julho de 2013

Pela não banalização do "estado de Robocop"

por Alexander Martins Vianna

Em 18 de julho de 2013, houve uma Cúpula de Segurança no Estado do Rio de Janeiro por conta das manifestações no bairro Leblon contra o governador Sérgio Cabral, que exigia, entre outras coisas, a CPI para investigar a máfia dos transportes coletivos no Estado do Rio de Janeiro. A cúpula aconteceu um dia depois das manifestações porque, num bairro nobre da cidade do Rio de Janeiro, ocorreu o que foi classificado como 'vandalismo' pela imprensa 'global': depredação de agência bancária e da portaria da Rede Globo, além do saque à loja Toulon. No entanto, não foi mostrado que a polícia fardada e infiltrada deixou propositalmente o local das depredações e saques para perseguir, em suas razias covardes, os manifestantes desarmados nas ruas do entorno, que fugiam do ataque da polícia, com várias confrontações defensivas. Tais ações de perseguição foram classificadas pela polícia e pela imprensa ‘global’ como combate à 'formação de quadrilha'. Tal ‘combate’ não poupou, tal como aconteceu com Rafucko, o recurso a testemunhos falsos e a provas fraudulentas. Também não foram mostrados policiais infiltrados aumentando o fogo na Rua Ataulfo de Paiva ao queimar cones de sinalização. Também não foi dito que foram os policiais que provocaram, mais uma vez, a reação violenta dos manifestantes ao seguirem a ordem de “dispersar a multidão”. 

Lembrem que o comando da polícia, em situações de manifestação política numa ‘ordem democrática’, não dispersa a “multidão” a menos que haja ordem da cúpula do estado, o que significa secretário de segurança e o próprio governador. Bem pesando tudo, as declarações posteriores do alto comando da polícia e a abordagem do evento pela ‘imprensa global’ parecem-me uma eficaz ação de descrédito das manifestações que parte do próprio governo, que tem contado com um tipo de abordagem moralista que estrategicamente aciona os conceitos antitéticos assimétricos “vandalismo/bandido” e “ordeiro/pacífico” como categorias de percepção e de avaliação das ações do agente coletivo de protesto. Em tal conflito de interpretação das ações de protesto, o direito à propriedade e à acumulação de uma minoria precede, em valor e positivação social, o direito à dignidade e à sobrevivência de uma maioria. No final das contas, tais categorias de percepção e de avaliação, acionadas para enquadrar o agente coletivo de protesto, pouco disfarçam as tensões de classe que estão presentes na insatisfação popular. Observem que os alvos do dito ‘vandalismo’ no Leblon não foram fortuitos: loja da Toulon, agência bancária e sede da Rede Globo. O ataque à sede da Rede Globo, por exemplo, não representa um atentado à liberdade da imprensa, mas a manifestação crítica contra o monopólio do sistema de telecomunicações que, na prática, nega a diversidade, haja vista a própria forma como os protestos são abordados sempre com as mesmas tópicas e motivos discursivos, cabendo à precária Mídia Ninja garantir alguma diversidade na abordagem dos eventos, assim como, os indivíduos que deles participaram e que tentam criar um campo discursivo alternativo nas redes sociais, não sem os perigos de bloqueios e monitoramentos.

Atualmente, o monopólio na veiculação de tópicas e motivos discursivos para enquadrar o agente coletivo de protesto significa, por exemplo, não dizer que a polícia deliberadamente abandonou o local do dito ‘vandalismo’ para perseguir manifestantes desarmados. No entanto, considerem o fato de que, mesmo a polícia não estando no local, não houve invasão de residências, ou seja, não houve saque a moradores enquanto pessoas particulares, mas ações contra pessoas jurídicas focais. Ora, isso não está vazio de significados sociológicos na atual situação de insatisfação sociopolítica e de crise de representatividade. Portanto, há algo mais do que ‘vandalismo’ nos desdobramentos seletivos da violência (e na anuência estrategicamente prevaricadora) da PM sobre os manifestantes que atuaram no Leblon. Simplesmente criminalizar a agente coletivo de protesto quando fere um determinado paradigma de ‘legalidade’ (centrado na inviolabilidade do patrimônio) é dizer muito pouco do que está em jogo nos focos de insatisfação e protesto e, ao mesmo tempo, isso demonstra uma já evidente guerra de paradigmas classificativos sobre ‘legalidade’, em que o ataque a patrimônios no Leblon motiva uma cúpula de segurança do estado, mas não o massacre na Maré. 

Segundo a imprensa ‘global’ e o governo do estado, foi a ‘boa gente’ de rosto individualizado no Leblon que foi atingida pela violência de ‘vândalos’, enquanto os mortos da Maré são apenas estatística econométrica sem rosto do ‘vandalismo institucional’ anônimo e traiçoeiro do Estado, assim como, da desigualdade social em nosso país. No entanto, para muitos, “bandido bom é bandido morto”, particularmente se for “negro, favelado e encapuzado” atingindo a sua classe social, enquanto se mantêm afivelados no preconceito social que sustenta um paradigma de ‘legalidade’ que não só protege a propriedade, mas também cria muitos embaraços jurídicos que facilitam que uma minoria massivamente mortífera, mas muito ‘polida e civilizada’, torne uma maioria refém da degradação social e cultural. Sem perceberem, aqueles que ingenuamente pensam “bandido bom é bandido morto [se negro, favelado e encapuzado]”, acionam os valores que nos conduzem para o ‘estado o-c-p-izado de Robocop’. 

Os eventos no Leblon e a reação da imprensa dizem muito sobre problemas históricos estruturais, mas somente podem ser ouvidos em seus ecos profundo por quem consegue enxergar o problema para além de uma reação emocional em torno de figuras estrategicamente individualizadas, em seu sofrimento, por uma imprensa socialmente seletiva, monopolizada e estereotipadora, com sua tática recorrente de provocar emoção e drama em torno do sofrimento de indivíduos. Ao valer-se da dramatização do dano e da dor individualizada, a imprensa ‘global’ provoca um jogo de empatia e identificação emocional que oblitera a análise dos problemas estruturais que motivam os alvos dos ritos de violência num protesto coletivo. É preciso, portanto, estar atento à guerra ideológica que perpassa as formas de as mídias veicularem as ações de protesto. Afinal, manifestações que não incomodam são apenas lazer inócuo de desocupado, são 'palavras de ordem' inofensivas ao vento, que somente mantêm o engodo midiático de uma democracia estagnada, que se recusa a se aperfeiçoar, de sequer executar, 'de facto' e não apenas 'de jure', os fundamentos democráticos-sociais de nossa Constituição. 

No final das contas, o moralismo ‘global’ quer protestos “pacíficos e ordeiros” num país paradoxal: temos uma carga tributária altíssima que não é utilizada, de fato, em políticas sociais consistentes que combatam a extrema desigualdade social, mas sim para sustentar o equilíbrio inflacionário do capital especulativo e sanear bancos, ou deslavadamente transferi-los, com celeridade jurídica, para as grandes corporações particulares por meio de consórcios e licitações de legitimidade contestável, como aqueles feitos em nome da Copa, enquanto serviços básicos são negados à população. Não parece estranho que um evento como a Copa seja marketeado como chance para investimentos nas cidades da Copa quando, na verdade, é mais uma chance de parceria público/privado que transfere, na forma de consórcios, recursos de impostos para grandes corporações? Por que a população precisa de Copa para ter serviços que deveriam existir em função dos seus impostos, a despeito da Copa? As parcerias público/privado não são expressões de uma questão de escolha institucional – de legalidade – que beneficia uma minoria a pretexto de serviços (limitados e precários) para uma maioria?

É claro que dizer tudo isso é bem mais abstrato do que um rosto plangente individualizado por uma lente de comunicação que focaliza a dor do patrimônio destruído, como foi o caso do proprietário da loja Toulon. E é ainda bem mais abstrato do que o ódio compensativo-vingativo, alimentado por preconceito social, moral e também racial, quando focalizamos os ‘bandidos de morro’ e achamos normal verem-nos desmembrados, decapitados e expostos como troféus da ação de nossa ‘heroica PM’ – a mesma PM que recebeu flores de algumas moradoras alienadas do Leblon, em 18 de julho de 2013, como reação simbólica aos protestos que, a seu ver, serviram de ensejo para ‘vândalos’ atacarem o patrimônio dos comerciantes do Leblon, ignorando o fato de que a própria PM estrategicamente prevaricou para causar descrédito à manifestação. 

Enquanto formos apenas indivíduos, é plausível que reajamos como indivíduos que sofrem e focalizemos ressentimento naquilo que imediatamente provoca o sofrimento. No entanto, fazer uma análise estrutural dos ritos de violência dos protestos envolve afastarmo-nos deste tipo de sentimento retaliativo individualizante que a imprensa alimenta ou potencializa – porque já existente – nas práticas sociais de um país como o nosso, de extrema desigualdade social, de ainda imperantes preconceitos sociais e raciais, além de altíssima carga tributária que não se traduz em política social consistente. Ponderando tudo isso, creio que já vivemos no ‘estado de Robocop’. O que o tipo de abordagem recriminante dos protestos (centrado em perdas individuais e num paradigma específico de ‘legalidade’) não quer explicitar é que os manifestantes não são desocupados, mas agentes sociais revoltados com algo que precisa de uma explicação estrutural e, como tal, ultrapassa as dores e danos individuais e focais... Ao falarmos isso, não se trata de sermos indiferentes às dores individuais e focais, mas de não nos deixarmos levar por um tipo de abordagem dispersiva ou desfocalizante da energia social dos protestos. 

É importante perceber que não é gratuito que os meios de comunicação ‘globais’ queiram categorizar positivamente os protestos como ‘pacíficos e ordeiros’, pois isso significa enquadrá-los num paradigma de ‘legalidade’ para o qual somente interessam se forem representações de festas cívicas inócuas, que pouco apontem para os problemas estruturais, que não interessam às elites, de fato, mudar. Não podemos considerar normal uma ‘legalidade’ cujos efeitos políticos e socioculturais são a banalização da subalternidade social e a individualização do fracasso. Agir assim é colaborar com a crueldade estrutural – aquela que não tem um rosto individualizado que chora a perda de um patrimônio –; é ser anuente com o ‘vandalismo institucional’, tal como afirmou, em junho de 2013, o senador Cristovam Buarque. Portanto, se as autoridades atualmente constituídas no governo e nos meios de comunicação querem que as razões dos protestos arrefeçam, então, mudem o foco, repensem a forma de fazer política, questionem a crise de representatividade, reflitam por que os protestos são horizontais e os votos em branco escalonais e, por fim, deem chance para a exposição de outras tópicas temáticas e paradigmas críticos, pois impostos deveriam se traduzir em política social consistente e não em lastro para o capital especulativo. A ocasional truculência policial no Leblon – que atacou os manifestantes e estrategicamente participou e/ou permitiu a destruição de patrimônios públicos e privados – é fato consumado e recorrente nas favelas do Rio e na Baixada Fluminense, ou seja, os espaços geográficos subalternizados na malha urbana de onde vêm os trabalhadores que, no Leblon, atuam naqueles serviços que a ‘boa gente’ desse bairro (que distribui flores para a PM) não quer para seus filhos.

Alexander Martins Vianna é graduado em História, mestre e doutor em História Social. Em História Moderna, trabalha basicamente com as ferramentas analíticas da História Social da Cultura, com ênfase temática em concepções e práticas políticas, cultura letrada cortesã, lógicas institucionais e dinâmicas de distinção social do Antigo Regime. Atualmente, é professor de História Moderna da UFRRJ. 


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