quinta-feira, 2 de abril de 2009

O Acordo Ortográfico Tem Significado Político

O significado político do Acordo Ortográfico é tratado com lucidez e profundidade no artigo de um dos mais respeitáveis linguistas do país, o Prof. Dr. José Luiz Fiorin, da USP. Intitulado O Acordo Ortográfico: uma Questão de Política Lingüística, esse artigo foi publicado na 4ª edição da revista eletrônica Linguasagem, do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Abaixo transcrevemos parte desse texto, que interessa de perto aos professores de Língua Portuguesa (os grifos são nossos):

[...] Nos últimos tempos, diferentes manifestações têm surgido sobre o assunto e mesmo pessoas consideradas especialistas na matéria têm incidido em uma série de equívocos. É preciso afastá-los para evitar que eles toldem nossa apreciação desse objeto.

O primeiro é que se está fazendo uma unificação da língua portuguesa. Isso não é verdade. [...] O que se pretende unificar é a escrita e não a língua, que varia de região para outra, de um grupo social para outro, de uma situação de comunicação para outra, de uma faixa etária para outra. A variação é um fenômeno inerente à língua, porque a sociedade em que ela é falada é heterogênea. É impossível uniformizar a língua. [...]

Muitos dos que se puserem contra o acordo, principalmente em Portugal, diziam estar defendendo a língua portuguesa. A revista VEJA de 12 de setembro de 2007 publicou um artigo que versava basicamente sobre a reforma ortográfica. Uma afirmação deve dele ser destacada: “o português pode ser transformado por um acordo ortográfico” (p. 88) A idéia de que a ortografia pode “corromper” a língua é um equívoco, porque se funda na noção de que a ortografia é um elemento central da organização das línguas. [...] a ortografia é uma convenção por meio da qual se representam as formas faladas da língua. Isso significa que nenhuma mudança ortográfica representa transformação da língua.

Os que defendem o acordo dizem que a simplificação da ortografia vai levar os estudantes a redigir melhor. É um engano. Os erros de ortografia, embora chamem muito a atenção, constituem o elemento mais fácil de ensinar no processo de aquisição da modalidade escrita da língua e, ao mesmo tempo, o menos importante dos problemas de redação. O verdadeiro problema é que os períodos tenham uma articulação sintática adequada, que os textos tenham clareza, coerência, coesão, etc.

Outro equívoco é que a reforma é muito tímida, dever-se-ia fazer uma mudança radical no sentido de simplificar a ortografia e aproximá-la da maneira como falamos. Na verdade, aqui há dois erros. Primeiramente, não se está fazendo propriamente uma reforma ortográfica e sim um acordo de unificação ortográfica e, portanto, ele atinge basicamente os pontos de divergência das duas ortografias e não faz uma reforma profunda na maneira de grafar as palavras. Depois, enganam-se os que pensam que se pode escrever como se fala, pois a pronúncia varia, por exemplo, de região para região dentro de cada país e, por isso, não se pode grafar tal como se fala. [...] Podia-se fazer reforma ortográfica radical até o início do século XX. Depois disso, com a alfabetização de quase toda a população e com o crescimento das bibliotecas, dos acervos, etc. não se pode mais pensar em alterar totalmente a ortografia.

Outro erro sobre o acordo é que ele, de fato, não unifica a ortografia. Como disse um conhecido professor de português, é “uma reforma meia-sola”. Os que afirmam isso se fundamentam no fato de que o tratado permite dupla ortografia nos casos em que no Brasil se acentua com acento circunflexo e em Portugal, com acento agudo, refletindo a diferença de timbre fechado e aberto [...] Afirmar que não houve a unificação é um erro porque as duas grafias passam a ser corretas no território da lusofonia. [...] com muita sabedoria, unificou-se, respeitando-se a diversidade de pronúncia refletida em formas históricas de grafar. Além disso, o princípio da dupla grafia existe já no sistema ortográfico brasileiro. [...] O princípio da dupla grafia não é uma invenção do atual acordo ortográfico.

O acordo apresenta vários problemas técnicos, que devem ser discutidos. No entanto, seu alcance não é propriamente lingüístico, mas político e, assim, ele deve ser analisado. Trata-se de uma decisão de política lingüística dos países lusófonos. [...]


Uma última observação deve ser feita. Uma língua não é um mero instrumento de comunicação, mas tem funções simbólicas muito importantes no seio de uma sociedade. É vista, por exemplo, como fator de unidade nacional, como ponta de lança da invasão cultural, etc. Uma política lingüística diz respeito muito mais às funções simbólicas da língua do que a suas funções comunicativas. Não são as necessidades reais de comunicação que pesam na definição de uma política lingüística, mas considerações políticas, sociais, econômicas ou religiosas.


Os séculos XVIII a XX marcam a criação das nações. A atual etapa do capitalismo exige a criação de entidades transnacionais. Uma dessas organizações é a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), o espaço da chamada lusofonia. Essa entidade transnacional tem escassas chances de se transformar num espaço econômico, de livre circulação de bens. Isso se deve ao fato de que o Brasil pertence ao MERCOSUL e Portugal, à União Européia. Veja-se, por exemplo, a impossibilidade de um acordo entre o MERCOSUL e a União Européia. Por outro lado, pelos compromissos de Portugal com a União Européia, nossa comunidade nunca será um espaço de livre circulação de pessoas. Só pode ser uma comunidade política, cultural e lingüística. Para isso, é preciso construir uma identidade comunitária. Foi pensando nisso que se assinou o acordo de unificação ortográfica. Em seus considerandos, diz-se que o acordo “constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa”. É nesse contexto que o acordo deve ser visto, ele tem um alcance simbólico. Visa a afirmar, por meio da unificação ortográfica, uma unidade lingüística que emerge de uma grande diversidade, que é o símbolo da unidade essencial dos povos da CPLP.

Passamos mal pelo primeiro teste de construção de uma identidade lusófona: a ratificação e a implementação do acordo de unificação ortográfica. Há razões relacionadas à afirmação do português no mundo para essa unificação. Entretanto, para mim, isso é o que menos importa. O que é significativo é que o acordo é um instrumento político de construção de uma identidade comum. Mas o que houve? Completa indiferença no Brasil, onde o acordo foi tratado com desdém (“há coisas mais importantes do que isso”), quando não com chacotas, e um clima de beligerância em Portugal.

Os lingüistas têm graves responsabilidades no clima de confusão que se formou. Pasquale Cipro Neto disse (VEJA, 12/9/2007, p. 90), que, por aceitar dupla grafia de uma série de palavras, ela não unifica nada. Entretanto, essa característica da reforma, o acolhimento da diversidade, é exatamente seu ponto forte como instrumento de construção identitária.

Em Portugal, os argumentos para colocar-se contra o acordo foram de “manutenção da pureza da língua original” (argumento que não resiste à mais superficial análise dos fatos); “rechaço à brasilianização da ortografia”, ao “colonialismo dos ex-colonizados”, que pretendiam impor uma “humilhação estatística a Portugal: 1,4% de alterações para Portugal contra uns míseros 0,5% do Brasil” (O Estado de S. Paulo, 2/12/2007, J7). Apesar de figuras do mais alto significado nos estudos da linguagem em Portugal, como Malaca Casteleiro, Carlos Reis e Maria Helena da Rocha Pereira, se terem colocado a favor do acordo, o jornal Público, de 8/4/2008, trazia na página 3 o seguinte título: “Livreiros e lingüistas contra. Brasileiros, timorenses, ex-exilados e galegos, pró”. Vasco da Graça Moura esgrimiu os seguintes argumentos diante da Assembléia Nacional: 1) “o acordo serve interesses geopolíticos e empresariais brasileiros, em detrimento dos interesses inalienáveis dos demais falantes de português no mundo, em especial do nosso país”; 2) “é uma lesão de um capital simbólico acumulado e de projecção planetária”; 3) “vai homogeneizar integralmente a grafia portuguesa com a brasileira (....) desfigurando a escrita, a pronúncia e a língua, que são nossas”. Não nego a complexidade da questão e os múltiplos interesses envolvidos no tema. Entretanto, a discussão do acordo revela nossa incapacidade de construir uma identidade lusófona. Os argumentos aparecidos em Portugal de preservação da pureza da língua, de não aceitação da diversidade, são comuns aos argumentos da extrema direita na defesa da identidade nacional. Revelam, ao mesmo tempo, um temor e um desdém pelo Brasil. No Brasil, a discussão deixa patente uma completa indiferença por Portugal.

Não temos, como estudiosos da linguagem, o direito de fomentar ódios, ressentimentos, fantasias nacionalistas. Não temos o direito de não perceber o que está em jogo numa questão como a do acordo de unificação ortográfica. O acordo tem problemas técnicos e eles devem ser mostrados e discutidos. Ele pode ser combatido pelos seus defeitos e não por suas qualidades (a própria idéia da unificação ortográfica e o acolhimento da diversidade), que dizem respeito à afirmação de uma identidade comum. Superar o nacionalismo e a xenofobia, que tanto infelicitaram o século XX, é uma ação importante.

Para que a lusofonia seja um espaço simbólico significativo para seus habitantes, para que seus membros tenham uma identidade lusófona, é preciso, no que diz respeito à língua, que seja um espaço em que todas as variedades lingüísticas sejam, respeitosamente, tratadas em pé de igualdade. É necessário que não haja a autoridade "paterna" dos padrões lusitanos. Evidentemente, a lusofonia tem origem em Portugal e isso é preciso reconhecer. Contudo, Portugal não pode pretender a hegemonia da legitimidade lingüística, desejo que fica visível nos argumentos dos que se puseram contra o acordo. No entanto, o que se espera na construção do espaço enunciativo lusófono é a comunidade dos iguais, que têm a mesma origem. Esse é o significado da afirmação de Caetano Veloso:


Minha pátria é minha língua
E eu não tenho pátria: tenho mátria
E quero frátria.


Não se pode esquecer que pátria e pai são formados da mesma raiz. A eles estava ligada a potestas (Benveniste, 1969, p. 217-218). A lusofonia não será pátria, porque não será um espaço de poder ou de autoridade. Será mátria e será fátria, porque deve ser o espaço dos iguais, que têm a mesma origem. Se assim não for, ela não terá nenhum significado simbólico real, será um espaço do discurso vazio, de um jargão político sem sentido.

O artigo integral do Prof. Fiorin se encontra disponível neste link.